William:
O dia amanhecia. Embora minha casa não tivesse acesso nenhum à luz solar, eu pressentia a chegada detestável do alvorecer lá fora, sempre me cobrindo de inseguranças.
Após deixar Marília presa no porão, voltei para o andar superior, no quarto. Emily permanecia desacordada, verifiquei sua temperatura. Apesar de ter acabado de suturá-la, provavelmente sob efeito dos antibióticos intravenosos, não estava febril nem quente.
Queria ter forças para tomar banho, me sentia imundo e gelado. Minha pouca disposição fenecia com a imagem de Emily desfalecida em meu leito. Pela segunda vez eu a coloquei em perigo, pela segunda vez fui incapaz de protegê-la de mim mesmo e de Marília - que era minha responsabilidade. Era mais que culpa e medo, era uma angústia apertada e sufocante que fazia até piscar ser exaustivo.
Me deitei ao seu lado e me permiti ser levado pela afluência de péssimas sensações, porque não tinha a menor condição de lutar contra. Adormeci sem me dar conta, abraçado à sua cintura e com a cabeça apoiada no seu peito, da forma como estava antes de ela acordar e descer para a cozinha, desejando que nunca tivesse saído de lá.
(...)
Despertei não sei quanto tempo depois, com um solavanco. Assustado, abri os olhos e busquei por Emily quase em um desespero instantâneo, ela estava exatamente no mesmo local, deitada na cama ao meu lado e com o lençol branco cobrindo até a altura do peito. Dessa vez, acordada e me fitando aflita. Me sentei para verificar sua situação.
- Emily... - murmurei, tocando sua testa, averiguando a febre.
Continuava fria. Meu coração acalmou, em especial ao retirar o lençol e analisar o ferimento. Continuava do mesmo jeito, o curativo estava seco e limpo.
- William... eu... eu... - tentou falar, forçando a voz sofrida através da garganta.
- Está tudo bem. - disse com brandura, aproximando o rosto. - Você foi atacada. Eu suturei o corte e te mediquei.
- Eu fui atacada... - repetiu. - Eu fui atacada por uma assombração que vagueia a sua casa.
Fui tomado por calafrios tenebrosos com sua declaração. Segurei sua face e a fitei intrigado.
- Assombração?
- Você se alimenta da podridão dela.
- É a Marília. - expliquei rápido, desconfortável.
- Você roubou a vida dela, o sangue dela, a alma dela.
Eu não compreendia porque Emily continuava falando daquela forma. Não se parecia com ela. Meneei a cabeça em negativo, fechei as pálpebras com imenso pesar e engoli saliva tentando não me assustar.
- Não... Eu...
- Você a matou, Wiliam. - sussurrou, voltando a fechar os olhos. - E vai me matar também...
- Não!
Uma tristeza nua e primitiva se apoderou de mim, era a sensação muito parecida com o que senti no pesadelo em que a enterrava no jardim. Fiquei atormentado, enlaçado a um pressentimento de agouro e tragédia.
Tentei encontrar sentido nas frases de Emily... talvez só estivesse delirando, afinal levou uma facada e não recebia os cuidados necessários. Ou talvez estivesse certa e não demoraria para eu perdê-la.
- Não me abandone, Emily... - falei enxugando as lágrimas que surgiam, e a observando sem saber o que fazer. - Por favor...
Ela havia adormecido novamente. Essa era a hora ideal de pegá-la e levar imediatamente para o hospital. Mas, em minha insanidade, eu não era capaz. O Sol permanecia alto, ofuscando qualquer chance de eu salvá-la, me afundando em temor e impotência.
Respirando seu cheiro de sangue e agarrado ao corpo inerte, terminei por adormecer também, com o meu rosto molhado.
(...)
Acordei ao anoitecer. Levantei a cabeça pesadamente e olhei para baixo. Emily estava inconsciente, ferida e estática. Não houve febre nem reações, apesar de ter delirado e falado coisas sem sentido. Talvez nem tivesse acontecido, talvez eu tivesse sonhado.
Apanhei os remédios, reaplicando a segunda dose para que a sutura continuasse cicatrizando sem a necessidade de levá-la ao pronto-socorro. Após medicá-la, dei um demorado beijo sobre seus lábios.
Fiquei algum tempo a observando, pensando quanto demoraria para melhorar por completo. Semanas, meses? Me perguntava como permiti me apegar tanto, ao sangue dela, tão precipitadamente, sendo que não era do meu feitio me entregar com facilidade às pessoas. Agora colhia o sofrimento desse sentimento.
Depois me retirei do quarto para ir verificar Marília, que estava aprisionada no porão.
Peguei a lamparina e destranquei a porta do porão. Desci as escadas, pensando em libertá-la do castigo, invadido por uma comoção estranha, compadecido pela maneira como a tratei na noite anterior quando movido pela fúria.
O silêncio se fragmentava lentamente sob os passos do meu sapato social, a penumbra se rompia através da lamparina erguida na minha mão. E nos últimos degraus eu ouvi o ranger de uma corda esticada, que balançava devagar, pra lá e para cá.
Meus olhos estavam pregados no chão de losangos. É estranho afirmar que, no fundo, eu sabia o que encontraria, e aquele ruído confirmava meu receio.
Reunindo coragem que já não existia, ergui a cabeça e vislumbrei a terrível cena... a corda estava presa na viga do teto. O corpo estava suspenso, pendurado pelo pescoço. Marília balançava suavemente, a cabeça inclinada pra frente, os cabelos loiros cobrindo a face.
Eu caí de joelhos como ela fizera na noite anterior ao implorar para não ser deixada, mas dessa vez fui eu quem agarrei seus tornozelos e chorei. Repousei a lamparina sob o corpo pendurado e fiquei abraçado ao cadáver de Marília, até meu fôlego acabar e minhas lágrimas secarem.
A sua voz delicada ressurgia no porão me atormentando... "Por favor, senhor Skarsgård... não deixa a Marília aqui... a Marília está sozinha e vazia."
E agora, quem estava sozinho e vazio, era eu.
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Obsessão de Sangue || Bill Skarsgård ✓
VampireDARK ROMANCE+18 William acredita ser um vampiro, essa condição se chama Síndrome de Renfield. Desde que foi diagnosticado, tem vivido uma constante ambiguidade entre a realidade e fantasia. Ao conhecer Emily, uma mulher intensa e sensível, cheia d...