XXI. Letárgica

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Emily:

Abri as pálpebras pesadas e minha vista focou com dificuldade os pilares da cama de William. O acortinado de veludo com franjas que compunham as colunas, me pareceram arder em chamas. Pisquei confusa, procurando compreender, e o fulgor do fogo evaporou, era um delírio.

Tentei me sentar, mas o corpo estava dormente, como que sedada por morfina. Fiz esforço, com uma necessidade repentina de me levantar, e o dormitório girou. Segurei a cabeça e ponderei a respiração, não encontrei meu fôlego, não encontrei meus sentidos, estava tudo perdido, distorcido e embaralhado.

Como que embriagada, esperei por alguns minutos para recuperar a normalidade e pousei os pés no carpete macio. Vacilante, segurei em algo conseguindo me colocar de pé. Caminhei devagar tentando manter a consciência, sem desmaiar, até alcançar o grande espelho na parede.

Parei adiante dele e me observei. Estava nua, mais pálida que o normal, os longos cabelos negros divididos cobrindo os seios. A pele estava parcialmente suja de sangue seco e meio envelhecido, quase marrom. Havia uma curativo no meu peito, próximo do ombro direito. Joguei o punhado de cabelos para trás, para analisar e arranquei a gaze.

Havia um corte que foi suturado recentemente. Hematomas profundos, roxos e quase pretos, se espalhavam aos arredores da sutura. Além disso, haviam marcas de dedos em meu pescoço, como se alguém tivesse tentado me esganar.

Era estranho, eu não sentia dor, nem desconforto. Não sentia nada. Era como se meus músculos tivessem entorpecidos, e letárgica eu fiquei extensos minutos estudando meu reflexo em decadência, sem me reconhecer. Até identificar, no fundo do meu peito, uma angústia bem peculiar. Essa tristeza, quanto mais eu a distinguia, mais pesarosa ficava.

Eu não me lembrava, mas alguém me feriu... alguém me atacou... tudo o que eu recordava era de William. Onde ele estava? Me retirei da frente do espelho, desistindo dessa bizarra tentativa de compreensão, e caminhei para a porta entreaberta do quarto.

Ao sair, a brisa fria do corredor atingiu minhas pernas. Estava nua, porém ignorando esse detalhe, prossegui a caminhada para as escadas. Agarrei o corrimão antigo de gesso e desci para o saguão de entrada.

A grande porta de saída estava aberta, escancarada para a noite. Meus olhos focavam e desfocavam a Lua, surgindo cheia e amarelada por detrás dos galhos retorcidos das árvores sombrias do jardim de William.

Parei e segurei no batente, tendo apoio. Uma fina névoa vagueava baixa pelos arbustos e matagal desarranjado. E então eu o vi... William estava lá, através da névoa, com uma pá, cavando uma cova.

Tentei me aproximar, devagar. Estava silenciosa, ele não me notou, concentrado na sua tarefa. E ao parar adiante do buraco na terra, eu pude ver o cadáver daquela menina... sendo enterrada. Era ela. A pele fosca, os cabelos loiros, agora mais secos, os olhos fechados para nunca abrir, e um rastro vermelho medonho no pescoço, feito a marca de uma corda.

Tudo veio à minha mente, e as memórias travadas no crânio surgiram como um fôlego há tempos preso. Ela havia me atacado!

- William... - chamei, porque com a lembrança, veio a dor, o frio, a agonia.

Ele estava com a cabeça abaixada, lamentando pela perda

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Ele estava com a cabeça abaixada, lamentando pela perda. Levantou os olhos pra mim, o verde no exato mesmo tom que as folhas ao seu redor. O cabelo úmido e orvalhado jogado na testa, a feição enlutada e angustiada.

- Emily!! - exclamou repentinamente mudando de expressão, largou a pá e saiu do buraco, vindo à minha direção.

Arrancou o sobretudo e colocou sobre meus ombros, para eu vestir e cobrir a nudez. Era um casaco comprido que me protegeu até a altura dos joelhos. Enquanto o fazia, observei seu aspecto, parecia doente.

- Você acordou... - murmurou e beijou minha testa, surpreso. - Você parece... bem.

- Não era pra parecer? - questionei, sentindo ele segurar minhas mãos com as suas.

- Você foi apunhalada pela Marília e... - engoliu ressentido. - Eu cheguei tarde. Tentei suturar a ferida e cuidar, me espanta que melhorou rápido... - me encarou com afinco e preocupação. - Como está se sentindo?

- Ela tá morta... - falei, desviando a atenção dele para a menina no buraco. - Você tá enterrando...

- Ela... Ela se matou nessa noite.

- Por que?

- Porque eu coloquei de castigo, e... - deu uma pausa, com evidente dificuldade em explicar. - Eu disse coisas horríveis. Estava com raiva pelo o que ela fez com você...

- Você mentiu pra mim. Disse que vivia sozinho.

- Me perdoa, Emily. - apertou minhas mãos, com um apreço intenso. - Não sabia como contar sobre Marília.

- O que ela era, exatamente, pra você?

- Era como uma filha. - explicou. - Eu a adotei quando era criança.

- Adotou, não. - corrigi. - Você sequestrou. Manteve presa durante todos esses anos, só para beber seu sangue.

- Não foi só pelo sangue. Eu cuidava dela...

- Você a amava? - cortei.

- Sim... muito... Mas o que ela sentia era nocivo, obsessivo...

- Agora ela tá livre. - conclui, soltando dele e virando as costas.

William não me seguiu nem insistiu na conversa. Me viu afastando e somente fechou os olhos, sendo reprimido por uma inquestionável tristeza e culpa. Eu o observei de longe, de trás de um tronco de árvore.

Ele voltou a enterrar Marília, porém, da minha perspectiva, era como se uma mão invisível o empurrasse pra baixo, cada vez mais e mais, e eu enxergava nele uma dor anormal, uma dor que afetava a alma.

Lamentava com ele pelos recentes eventos e reconhecia seu sofrimento.

Enquanto William jogava a terra sobre o corpo da menina, algo me chamou a atenção. Era um material mole e escuro largado no meio das plantas selvagens, há alguns metros de distância da cova. Me aproximei intrigada, segurando nas árvores e identificando que tratava-se de uma mochila jogada, suja de terra.

Abaixei e apanhei, percebi imediatamente... Lola! Era a mochila da Lola! O que a mochila da minha meia-irmã fazia no jardim de William?? Com uma pontada excruciante no coração, me recordei que havia pedido para ela ir até a casa dele há dias atrás... Ele a sequestrou?? Assim como fizera com Marília??

Abraçada na bolsa imunda e úmida de Lola, olhei para William enquanto ele terminava de cobrir a sepultura, e pela primeira vez senti medo. Medo de suas atitudes, de sua loucura, de sua obsessão de sangue. E somente então, após duas experiências de morte, me dei conta quem ele realmente era.

Obsessão de Sangue || Bill Skarsgård ✓Onde histórias criam vida. Descubra agora