Corredores lotados e corações trespassados

865 17 24
                                    

Poppy
— Você tem certeza de que está bem? — minha mãe perguntou, enquanto acariciava meu braço. O carro parou.
Sorri e fiz que sim com a cabeça.
— Sim, mamãe, estou bem.
Seus olhos estavam rodeados por círculos vermelhos, e lágrimas brotavam neles.
— Poppy, querida, você não precisa ir à escola hoje se não quiser.
— Mamãe, eu gosto da escola. Eu quero estar aqui. — Encolhi os ombros. — Além disso, tenho aula de história no quinto tempo, e você sabe o quanto adoro. É minha aula predileta.
Um sorriso relutante apareceu em sua boca e ela riu, enxugando os olhos.
— Você é igualzinha à sua avó. Teimosa feito uma mula e sempre vendo os raios de sol atrás de cada nuvem. Vejo a personalidade dela brilhar em seus olhos todo dia.
O afeto encheu o meu peito.
— Isso me deixa realmente feliz, mamãe. Mas estou falando sério, estou bem de verdade — eu disse, com sinceridade.
Quando os olhos dela se encheram de lágrimas novamente, ela me pôs para fora do carro, enfiando o atestado médico em minha mão.
— Aqui, não deixe de entregar isto.

Peguei o papel, mas, antes de fechar uma porta, me abaixei para dizer: — Eu te amo, mamãe. Com todo o meu coração.
Minha mãe fez uma pausa, e vi uma felicidade agridoce se espalhar por seu rosto.
— Eu também te amo, Pops. Com todo o meu coração.
Fechei a porta e me virei para entrar na escola. Sempre achava estranho chegar atrasada à escola. O lugar estava tão quieto e calmo, meio apocalíptico até, o oposto da arruaça do período do almoço ou da correria louca dos alunos entre as aulas.
Tomei o caminho da direção para entregar o atestado médico para a sra. Greenway, a secretária. Enquanto me dava meu passe de entrada, ela perguntou: — Como vai, querida? Mantendo essa cabecinha linda levantada?
Sorrindo para seu rosto bondoso, respondi: — Sim, senhora.
Ela me deu uma piscadela, fazendo-me rir. — Essa é minha garota.
Olhei o relógio e vi que minha aula havia começado fazia apenas quinze minutos. Indo o mais rápido que podia para não perder mais nada, atravessei as duas portas até chegar ao meu armário. Eu o abri com um puxão e tirei a pilha de livros sobre literatura inglesa de que precisava para a aula.
Ouvi a porta no final do corredor curto se abrindo, mas não prestei atenção. Assim que peguei tudo de que precisava, fechei a porta do meu armário e me virei para ir à aula, tentando lidar com todos aqueles livros. Quando olhei para cima, congelei.
Tenho certeza de que meu coração e meu pulmão pararam. De pé, uns dois metros e meio à minha frente, aparentemente tão grudado no chão quanto eu, estava Rune. Um Rune altíssimo, completamente crescido.
E ele olhava para mim. Os olhos azuis como cristal me pegaram em sua armadilha. Eu não conseguiria ter me virado nem se quisesse.
Por fim, consegui respirar e enchi os pulmões de ar. Como um cabo de bateria, isso fez meu coração bater, bater furiosamente sob o olhar fixo daquele cara. Aquele que, se eu fosse honesta comigo mesma, eu ainda amava mais que qualquer coisa no mundo.
Rune estava vestido como sempre – camiseta preta, jeans justo preto e botas pretas de camurça. Mas agora seus braços estavam mais grossos; sua cintura, mais magra e torneada, afunilando seu quadril. Meus olhos foram para o rosto dele, e meu estômago virou. Pensei que tivesse visto toda a beleza dele

na noite anterior, quando ele estava sob o poste de luz, mas eu não tinha.
Mais velho e mais maduro, ele era possivelmente a criatura mais bonita que eu já tinha visto. Sua mandíbula era forte, definindo perfeitamente seu rosto escandinavo. As maçãs do rosto eram proeminentes, mas de jeito nenhum femininas, e uma leve sombra de barba loira enfeitava-lhe o queixo e as bochechas. O que não tinha mudado, constatei, eram aquelas sobrancelhas de um loiro-escuro sulcadas sobre seus olhos azul-claros amendoados.
Aqueles olhos que nem mesmo uma distância de mais de seis mil quilômetros e uma escala de tempo de dois anos poderiam apagar da minha memória.
Mas aquele olhar, aquele olhar que naquele momento perfurava o meu, não pertencia ao Rune que eu conhecia. Porque estava cheio de acusações e ódio. Aqueles olhos estavam me encarando com um visível desprezo.
Engoli a dor que arranhava minha garganta, a dor de ser a destinatária de um olhar tão duro. Ser amada por Rune trazia uma sensação de calor inebriante. Ser odiada por Rune era como estar em uma plataforma no gelo ártico.
Passaram-se minutos, e nenhum de nós se moveu um centímetro. O ar parecia estalar ao nosso redor. Observei quando a mão de Rune se fechou. Ele parecia lutar consigo mesmo. Eu me perguntava contra o que ele estava lutando dentro dele. O olhar em seu rosto ficou ainda mais sombrio. Então, atrás dele, a porta se abriu, e William, o monitor do corredor, surgiu.
Ele olhou para mim e Rune, sendo a desculpa de que eu precisava para me libertar da intensidade daquele momento. Eu precisava assentar minhas ideias.
William limpou a garganta.
— Posso ver os passes de vocês?
Assenti com a cabeça e, apoiando meus livros num dos joelhos, fui mostrar o meu, mas Rune enfiou o dele na frente.
Não reagi a essa evidente falta de educação.
William olhou o passe dele primeiro. Rune tinha ido pegar os horários de suas aulas e por isso estava atrasado. William devolveu o passe a Rune, mas ele ainda assim não se moveu. William pegou o meu. Ele olhou para mim e disse: — Espero que melhore logo, Poppy.
Meu rosto empalideceu, imaginando como ele sabia, mas então percebi que o passe dizia que eu havia ido ao médico. Ele estava apenas sendo gentil. Ele não sabia de nada.
— Obrigada — eu disse nervosamente e arrisquei um olhar para cima. Rune estava me observando, mas dessa vez sua testa parecia vincada. Reconheci sua expressão de preocupação. Assim que Rune me viu olhando para ele, lendo-o

corretamente, a preocupação foi logo substituída pela carranca de antes.
Rune Kristiansen era lindo demais para fazer caretas. Um rosto lindo como aquele deveria sempre trazer um sorriso.
— Vamos, vocês dois, vão para a aula.
A voz dura de William tirou minha atenção de Rune. Deixei os dois para trás e me apressei pelas portas do fundo. Assim que entrei no corredor seguinte, olhei para trás, apenas para ver Rune me observando pelos grandes painéis de vidro.
Minhas mãos começaram a tremer com a intensidade de seu olhar, mas de repente ele foi embora, como se estivesse se forçando a me deixar em paz.
Levei vários minutos para me recompor, então me apressei para minha aula.
Uma hora depois, eu ainda estava tremendo.
Uma semana se passou. Uma semana evitando Rune a todo custo. Eu ficava no meu quarto até saber que ele não estava em casa. Mantinha minhas cortinas fechadas e minha janela trancada – não que Rune fosse tentar entrar. Nas poucas vezes que o vi na escola, ele havia me ignorado ou me olhado como se eu fosse sua maior inimiga.
As duas coisas doíam na mesma medida.
Nos horários de almoço, eu ficava longe da cafeteria. Fazia as refeições na sala de música e passava o resto do tempo praticando violoncelo. A música ainda era meu porto seguro, o único refúgio no qual eu poderia escapar do mundo.
Quando meu arco tocava a corda, eu era transportada por um mar de notas e tons. A dor e a tristeza dos últimos dois anos desapareciam. A solidão, as lágrimas e a raiva, tudo evaporava, deixando uma paz que eu não encontrava em nenhum outro lugar.
Na semana anterior, depois de meu encontro pavoroso com Rune no corredor, precisei escapar daquilo tudo. Precisei esquecer aquele olhar com tanto ódio. A música era normalmente meu remédio, então me joguei na prática intensa. O único problema? A cada vez que eu terminava uma música, assim que a última nota se dissipava e eu baixava meu arco, aquela devastação, agora dez vezes maior, voltava a me tomar. E permanecia. Hoje, depois que terminei de tocar na hora do almoço, a angústia me assombrou pelo resto da tarde. Ela pesava em minha mente conforme eu saía do prédio da escola.
O pátio estava movimentado, com os estudantes indo para casa. Mantive a cabeça abaixada e fui me esgueirando pela multidão, apenas para virar a esquina e ver Rune e seus amigos sentados no campo do parque. Jorie e Ruby estavam lá também. Assim como Avery.

Mil beijos de garoto Onde histórias criam vida. Descubra agora