As horas se arrastavam. Duas horas. Três horas. Quatro. Parecia uma
eternidade. Eu estava louca para andar de barco. Nunca tinha enfrentado o mar.
Depois que voltamos do Trapiche, um pouco mais moderadas - quer dizer, com menos álcool na cabeça -, resolvemos ficar na sala jogando baralho, falando bobagem, tentando espantar o sono que queria nos pegar.
Mas como tínhamos que acordar bem cedo, preferimos ficar acordadas a correr o risco de
perder a hora.
- Vocês viram lá no quarto a Vênus e meu irmão? Estão dormindo na
cama de casal. A cama do meu pai e da minha mãe. Aquela vaca! Mas o Marco
me paga. Quando voltarmos, papai e mamãe vão saber de tudo!
-E ele disse que ia levá-la para casa e que depois voltaria para nos
pegar - reclamou Piera, morta de ciúmes.
-Acho que a casa dela é aqui agora. Deixe ele. Isso não vai ficar assim
-vociferou Marisa.
-Larga de ser fofoqueira! -exclamou Joana, entretida no jogo. - Deixe seu irmão afogar o ganso à vontade. Além do mais, você gritando desse
jeito, vai acordar a vizinhança.
- Mas você deve ter visto alguma coisa. Não viu, Carla, eles lá na cama...?
- perguntou-me Marisa ignorando o que Joana dissera.
- Eu não vi nada - falei achando engraçado o jeito dela falar. - Também, não fico por aí espreitando pela greta da porta.
- Espreitando nada! - defendeu-se Marisa. - A porta está escancarada! Vai lá ver.
Na verdade, eu não tinha visto. E queria ver. Então me levantei, pedi
licença do jogo e fui. O corredor que levava aos quartos estava escuro. O quarto onde eles estavam era o último. Fui devagar e constatei que a porta estava entreaberta. Lá dentro os dois dormiam abraçados. Estavam nus. Mesmo na escuridão, era possível ver a silhueta dos corpos. Senti um calor percorrer o meu corpo. Achei imoral. Só não sabia dizer se aquele fogo que tomou conta do meu corpo era pelo fato de estar ali, espreitando os dois. Fechei a porta.
Na volta para a sala, cruzei com Piera.
- Aonde você vai? - perguntei.
- Vou dormir.
-Mas você não pode. Daqui a pouco vamos para o pier.
-Estou indisposta - disse ela, bocejando. - E com cólica. Vão vocês. Eu fico aqui.
- Mas você vai ficar o dia todo aqui sozinha?
- Sozinha não. Já combinei com a Marisa, vou ficar grudada no irmão
dela. Não vou permitir que ele engravide essa Vênus.
-Você está é com ciúmes! Pensa que eu não sei que você está caidinha pelo Marco?
-Eu? Imagina! - falou ela toda sem graça. Só não quero que ele faça alguma besteira.
Dei risada da infantilidade dela e do ciúme besta que ela estava
sentindo pelo irmão de Marisa.
-E você vai fazer o quê? Ficar entre o esperma e o óvulo?
- Não sei - respondeu ela ofendida. - E não é da sua conta. Vou dormir, tchau! e bateu a porta na minha cara.
Quando deu a hora, arrumamos nossas coisas. Pegamos nossas mochilas e fomos. Piera ficou encarregada de falar ao Marco sobre o nosso paradeiro. Com certeza ele não ia ligar pois, segundo Marisa, o Mazinho era um
velho conhecido da família.
Chegamos. Acho que eles estavam apenas nos esperando. Um rapaz
magro, alto, veio nos buscar com o bote.
- Pensei que vocês não vinham mais - reclamou Mazinho sorrindo e
abraçando cada uma de nós.
Fiquei olhando o Dragão. Era um barco como tantos outros de pescadores que ficavam ali. De madeira, com uma espécie de casinha no meio. Lembrava-me os desenhos de barco que eu fazia quando estava na escola
infantil. Sim. O Dragão parecia um barco retirado das páginas de desenho de crianças. Só o cheiro de peixe é que me parecia, a princípio, um tanto quanto desagradável.
Mazinho tratou de nos apresentar o Martim e sua mulher, a Zezé. Simpáticos, nos receberam com sorrisos e abraços. Martim estava sem
camisa, dentro de uma bermuda preta e carregava no pescoço duas máquinas
fotográficas. Já a Zezé estava com vestido estampado, amarelo, com flores
brancas. Tinha o cabelo preso; amarelo, crespo. Os dois formavam um belo
casal. Não tinham filhos, apesar de estarem juntos há mais de quinze anos.
Começou a viagem. O dia prometia. Prometia tanto que Marisa e
Joana já estavam de biquíni, para delírio da tripulação: dois rapazes que
ajudavam Mazinho e um quarto que estava na cozinha fazendo café, e que
eu ainda não tinha visto. Martim também não deixava de olhar aquelas
enormes bundas trançando de um lado para outro, como se estivessem num
iate. Eu, sempre muito envergonhada, preferi ficar metida numa bermuda
jeans e uma camiseta regata.
O café começou a cheirar. Estávamos na proa. Martim foi o primeiro a sentir.
- Que cheiro gostoso de café. Quem vai buscar?
Gentilmente me ofereci. Fui andando segurando nas cordas. Ainda
não conseguira me acostumar com o balanço do barco e morria de medo de
ser jogada ao mar. Cheguei até a cozinha, um minúsculo cubículo onde
ficava um fogão e uma pia muito encardida e abarrotada de copos sujos.
Quando cheguei, ele estava de costas. Virou-se e meu coração quase saiu
pela boca.
-Bom-dia falou ele sorrindo.
-Bom... bom-dia - respondi, me encostando no batente da porta
tentando dar a impressão que era o barco que me jogava para o lado, mas
eram, na verdade, minhas pernas que tremiam.-
- Você é a...?
- Carla.
- Isso, Carla. Acho que já nos conhecemos.
- O cantor... o pintor... o pescador... - brinquei.
- Roger. Lembra-se de mim?
- Claro que sim-respondi sorrindo.
Ele não disse mais nada. Ficamos nos olhando. Não sabia o que dizer.
Depois da decepção de não o ter encontrado no Trapiche na noite passada, foi uma surpresa muito grande.
- Vim buscar o café para o pessoal - consegui dizer.
-Está aqui. Mas pode deixar que eu levo - disse pegando a bandeja e saindo, passando por mim que estava na porta. Ao passar ele roçou seu corpo no meu. Foi como se eu tivesse levado um choque. Quase caí.
Fiquei olhando enquanto ele se distanciava. Olhei seu corpo. Agora,
à luz do dia, eu podia notar como ele era bonito. Diferente de todos os
rapazes que já tinha conhecido. Então não era sonho. Ele realmente existia.
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Os caminhos de Carla
Non-Fiction"Com a cabeça recolhida na mochila ouvia passos. Eram os demônios que povoavam minha cabeça. Para fugir deles, pensei em pessoas bonitas, músicas alegres, sorrisos falsos de gente triste que caminhava pela Rua do Meio. Então fiquei pensando na minha...