XVIII

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     Voltamos ao trapiche assim que anoiteceu. Desta vez o Marco nos acompanhou para decepção e desespero de Marisa.
     - E agora, como vou fazer para fumar e tomar minhas cervejas?
     - Calma - murmurou Porra no ouvido dela. - Ele está com a Vênus. Daqui a pouco eles desaparecem por aí.
     - Tem razão - concordou Joana, que estava de orelha em pé - Veja só como ela está pegando fogo. Só espero que seu irmão tenha juízo e use camisinha.
     - Isso mesmo daqui a pouco seu irmão sai para apagar aquele fogo - falei, pensando no desastre que seria a presença de Março ao nosso lado no trapiche.
     O resto do caminho até a rua do meio foi assim, um eterno silêncio Marco ia à frente com a vênus e nós atrás, admirando aquele traseiro que ela ttrazia no corpo jogando-o de um lado para outro.
     Quando passávamos em frente ao píer, olhei e vi uma estranha figura, diante de uma tela, pintando os barcos na penumbra.
     - Que coisa estranha! - exclamei - um pintor noturno.
     - É o Roger, seu adorado cantor - zombou Marisa.
     - Jura que é ele?
     - É não?! Só ele é louco para fazer esse tipo de coisa.
     - Acho que vou até lá então. Depois a gente se encontra no bar - falei, me separando delas e indo até o píer.
     Fui andando devagar, sentindo um pouco de vergonha. Ele estava tão distraído que não notou minha presença. Fiquei parada atrás dele durante um certo tempo. Vi que ele pingava o Dragão, lá no fundo, quase perdido entre barcos.
     - Bonito - falei para chamar sua atenção. Ele se virou e sorriu. Voltou a pintar. Ia vendo a pintura, tentando ver realidade naquilo que ele pintava. Era tão diferente. A realidade que eu via ali, na minha frente, nada tinha a ver com o que ele pintava.
     - Não está muito escuro para pintar?
     - Um pouco. Mas eu gosto dessa luz que ilumina os barcos.
     - Alem de cantor, pintor.
     - Nem uma coisa, nem outra - Murmurou ele com o pincel preso entre dedos.
     - O que você está pintando? - parei bem em frente à tela. O fundo era negro, com uma lua e o esboço de um barco cheio de flores.
     - É o Dragão carregando flores. Vai ter outros também. Ele está lá no fundo, está tudo escuro... - É ele foi me explicando o quadro, passo a passo o que fizera e o que pretendia ainda fazer.
     - ao longe os barcos de flores... - Poetizei.
     - É um.belo título para esse quadro.
     - Pode ser. É o título de um poema escrito por um poeta português. Não me pergunte o nome. Foi meu professor que disse em sala de aula. Do poema só lembro o título. Mas poderia também ser título de um livro, de uma música e de tantas outras coisas. E ele não disse nada. Continuou pintando. Notei que estava atrapalhando.
     - Vou embora. Você não vai cantar hoje??
     - Não sei. Ainda é cedo. Se me der vontade, mais tarde eu apareço por lá e canto mais uma música pra você.
     Saí dali decepcionada. Achei que ele foi frio comigo. Tudo bem. Não se ganha todas.
     Cheguei na Vila. A animação era geral. Paulinho me recebeu sorrindo, levou-me até a mesa onde estava o pessoal.
      - Dessa vez vocês não vão poder beber - falou ele de relance, piscando para Marco.
     Eu não me importava se ia ou não beber. Na verdade eu queria apenas que o Roger estivesse ali. Podia ter insistido para ele vir e cantar uma música para mim. Mais do que Encantada, queria ter certeza de que aquilo tudo fora real, e não um sonho da minha cabeça tão desmiolada.
     - Cadê o Roger? Você não o trouxe? Deixe ele solto por aí que outra lambisgóia laça. Não está vendo que esta ilha está cheia de mulheres sozinhas, abandonadas? - brincou Marisa, assim com um certo desdém.
     - Não enche! - reclamei, bem irritada.
     Fiquei na minha. Durante todo dia elas me cutucavão com gracinhas a respeito de Roger. Eu desconversava, saia de perto. Não queria comentar nada. Ainda não. Como disse, não sabia se tudo que acontecera, acontecera de verdade. Sonhos acontecem não é mesmo?
     As horas passaram. Marco Foi Embora com a namorada. Disse que levaria Vênus para casa e que depois voltaria. Não acreditei. Com certeza teria uma noite daquelas.
     Aos poucos os rapazes foram se aproximando e a cerveja chegando.                               
     - Paulinho, o músico não toca hoje -  perguntou Piera quando ele passou perto de mim.
     - Não sei - respondeu, olhando para os lados. - Acho que ele não chegou ainda. Se chegar ele toca, senão a festa continua sem ele.
     Saiu e foi atender outra mesa. Olhei feio para ela. Piera fizeram aquilo só para me provocar. Alguns garotos vieram conversar comigo. Estava azeda. Não queria conversar com ninguém. Começava acreditar que tudo não passava de um sonho.
     No trapiche não havia aquela frescura de gente rica ou pobre. Era comum os pescadores também sentarem a mesa ou no balcão e tomar sua cerveja ou pinga. No balcão um grupo de Caiçaras conversava animadamente. Paulinho, que estava entre eles, fez sinal para que Marisa fosse até lá. Ela foi. Alguns a comprimentaram formalmente, outras a beijaram no rosto e abraçaram como se fossem velhos conhecidos. Um deles, um senhor de cabelo branco nariz adunco, pele enrugada e lustrosa, ela segurou pela mão e levou até à nossa mesa.
     - Meninas, esse é o Mazinho, comandante do Dragão, o maior barco de pesca da ilha.
     - Mentira dela. O Dragão é apenas um barco. Nem muito grande, nem muito pequeno - corrigiu, segurando nas nossas mãos.
     Reparei que ele tinha uma mão quente e grossa, típica de quem trabalha muito. Era Alegre e jovial. Sentou-se ao meu lado. Parece que fui a única que me interessei pelas histórias de pescaria do velho Caiçara. As outras, uma após outra, saíram de fininho me deixando com aquele homem de expressão e gestos cênicos Principalmente quando me ouvia falar.
     Pronto. Arrumei companhia para a noite. Entre um cigarro e outro, entre uma bebida e outra, fomos conversando e dobrando o tempo. Havia arrumado um amigo. Um bom e velho amigo pescador.
     - Você sai amanhã para pescar? - perguntei à toa.
     - Não. Amanhã é domingo. Pescaria só de segunda a sexta. Fim de semana eu uso o Dragão para fazer passeios pelos lugares mais distantes da ilha. Aliás, amanhã eu vou levar o Martim e sua mulher numa outra ilha distante daqui para ele fotografar. Você não gostaria de ir junto? Chame as meninas. Quem sabe elas querem ir?
     - Mas será que esse tal de Martim não se importa?
     - O Martim? Que nada! Ele é gente finíssima. Apesar de ser argentino, ele é gente boa - disse ele errando na nacionalidade do Martim, que era chileno.
     - Tudo bem. Se você que é dono do barco está dizendo...
     - Eu não sou dono do Dragão. Apenas trabalho com ele... E tomo conta dele. O dono não mora aqui na ilha, não.
     - Está certo. Vou falar com as meninas, se elas toparem, amanhã cedo estaremos lá.
     - Bem cedinho. Marquei com ele às seis horas da manhã.

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