XIX

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     Era quase meia-noite quando o Dragão aportou. Enquanto os pescadores descarregavam o barco, saí discretamente. Despedi-me de todos com um breve aceno e um sorriso. A euforia tomava conta do ambiente. Era a hora de pesagem e venda dos peixes. Amanhã era dia de dinheiro no bolso, comida na despensa e alegria no rosto.
     No caminho de asfalto carcomido eu ainda sentia o balançar do mar. Parecia que eu pisava num colchão bem fofo. Aos poucos fui voltando ao normal.
     Paulinho baixava as portas. A noite estava fraca, então preferiu se recolher mais cedo. Contei para ele da pesca.
     - Isso é conversa de pescador. Está aprendendo com eles? - brincou comigo.
     - Não. Juro! Não coube no Dragão. Teve que chamar outro barco. Vá lá. Eles ainda estão descarregando - respondi entusiasmada.
     - Você termina de fechar pra mim? Eu volto logo.
     - Pode ir - falei, vendo a alegria dele.
     - Mas não vai dormir agora, preciso falar com você - disse ele saindo sem esperar a resposta.
     De portas abaixadas eu comecei a colocar as cadeiras sobre a mesa para depois varrer o chão. Pelo  jeito a noite tinha sido realmente fraca. O chão  estava limpo. Apenas alguns tocos de cigarro e cinzas. Sentia sede. Resolvi atacar a geladeira e peguei uma cerveja. Logo uma cerveja, que eu tanto odiava. Mas odiava tanta coisa que tinha que engolir, uma a mais, outra a menos, não fazia muita diferença. Procurei por cigarro e não encontrei. Ele não era muito amigo de cigarro, por isso não vendia ali. Então fiquei com o copo de cerveja.
     Esqueci a hora. Nem percebi quando ela passou. Entre uma golada e outra eu  ficava olhando as bolhas de ar que saiam do fundo do copo e subiam se misturando a espuma. Umas, duas. Três,  cinqüenta, cem... contava e reconta a sem ao menos saber o porquê. Talvez estivesse no limiar de uma loucura que se pronunciava. Voltei a mim quando ouvi a batida na porta. Tranquei-a sem querer. Fui lá e abri.
     - Mas é verdade mesmo. Eles passaram toneladas.
     - Não te falei? É eles vão ganhar um bom dinheiro com os peixes?
     Paulinho ergueu os ombros num gesto que não entendi muito bem.
Precisou que ele falasse.
     -Não muito. O suficiente para comer amanhã.
     -Mas como?! Eles pescaram muito peixe-protestei.
E por um acaso você acha que peixe vale ouro?
Não, mas...
     - Eles vão receber uma migalha pelos peixes. E ainda vão ter que
pagar o combustível, o gelo dessa saída e das outras em que eles não pescaram
nada. O que sobrar, vão dar a metade para o dono do barco e o resto dividir
entre eles.
     -Eles ficaram tão felizes...
     -Ficaram porque são sonhadores. Se contentam com pouco. Também
não sabem fazer outra coisa senão tirar sustento do mar. Mas pelo menos vão
ter dinheiro para comprar o pão amanhã.
    - Estou cansada. Acho que vou dormir.
    - Espere. Preciso falar com você.
    -Então fala - Respondi, virando o último gole de cerveja na boca.
     -Sobre ontem de madrugada.
     Dei um pulo do banco alto em que estava sentada. Juro que havia me esquecido. E não estava disposta a discutir isso. Há coisas que acontecem que não devemos discutir. Essa se tornou a minha filosofia.
     - Não temos nada que falar sobre ontem-disse, dando as costas.
     -Não foi minha culpa...
     -Eu te chamei
     -E quem está te acusando? -virei, encarando-o. - Eu te chamei para a cama. Não vou te acusar de estupro. Não foi isso que aconteceu... além
do mais, se não acusei teu filho aquela vez, jamais vou acusar alguém.
     Não sei o que me deu. Saí chorando e correndo para o quarto. Uma ânsia misturada com uma forte dor de cabeça tomou conta de mim. Tomei um banho, tentei me refazer e fiquei esperando Paulinho. Acho que tinha que lhe pedir desculpas. Fui grossa. Ele não era responsável pelo que acontecera, nem pelo que acontecera comigo naquele momento.
     Pobre Paulinho. Deitada naquela cama que era dele eu pensava nas
atitudes do coitado. Acho que ele sofrera mais do que eu. Fui estúpida.
Precisava pedir desculpas a ele. Ajoelhar a seus pés, se fosse o caso, e pedir que ele me perdoasse. E cadê o homem? Olhei no relógio. Fazia mais de uma hora que eu estava ali deitada, esperando por ele. Nada. Levantei-me e fui até à porta. Olhei pela janela. Dali se via o pequeno quintal que separava o Trapiche do quarto. Nada. Estava tudo escuro. O Trapiche dormia numa escuridão sem fim.
Estava tudo trancado e escuro, deserto. Deduzi então que Paulinho fora dormir em outro lugar. Não quisera dividir comigo o mesmo quarto. Mais um ponto para ele que estava certo. Certissimo!

Os caminhos de CarlaOnde histórias criam vida. Descubra agora