O dia ainda nem bem clareara e eu já estava pronta. Sabia que o dragão zarpava sempre antes do nascer do sol. Paulinho dormia com o travesseiro enfiado na cabeça. dormia Sereno, tranquilo. Vesti uma bermuda e camiseta e saí nas pontas dos pés. Não queria que ele acordasse.
Quando cheguei no Pier já havia movimento. Os homens se preparavam. Alguns levavam sacos de Gelo e jogavam no Porão do barco outros traziam água e alimento. Eram ao todo seis pessoas. Mazinho coordenava A operação e me viu quieta, diante da bomba de combustível. Fez sinal para que eu aguardasse, que ele mandaria alguém me buscar. Não mandou. Vendo que todos estavam ocupados, ele mesmo pegou o bote e veio me buscar.
Beijei seu rosto. Ele me sorriu um sorriso peculiar, só dele. Respirei fundo e senti o cheiro de peixe que pairava no ar, ruim e enjoativo para alguns, mas para mim um cheiro de vida, de água, de Mar...
- A tripulação continua a mesma ?
- Quase. Só um saiu.
Ele nem precisou dizer quem era. Eu já tinha até deduzido. Também, não tinha esperança de encontrá-lo no barco. Seria uma doce ilusão.
E mais, já não estava mais certa se queria encontrá-lo. A vida segue sempre seu ciclo natural, independente das pessoas. Então fiquei pensando seriamente em tocar minha vida sozinha, feito Guerreiro numa batalha solitária comigo mesma.
O sol apareceu e o dragão zarpou Mar Adentro. Aos poucos a ilha foi sumindo. De vez em quando um navio enorme passava por nós fazendo uma marola que jogava o barco para o lado e mexia com meu estômago.
Mazinho estava no Leme, e dava a rota e sentido aquela navegação. Um se ocupava do café que cheirava gostoso. O restante ficava pendurado nas cordas do mastro lá na proa. Olhos fitos no mar eles procuravam os cardumes que às vezes reluziam no fio da Água Azul do Mar. Fui para a polpa que, naquele momento, estava ocupada pela enorme rede que formava um pequeno Monte brilhante de linhas traçadas. Joguei-me lá. Deitei-me e fiquei olhando o céu azul. Meu estômago deu uma trégua e eu fiquei pensando no que fazer. Mais que tudo sentia saudades do meu papai e da minha mamãe. Sentia-me desprotegida. Mas, como meu analista mesmo dissera, eu tinha feito a coisa, agora tinha que terminar terminar... E sozinha. Esse era o meu caminho.
- Sonhando acordada ?
Virei-me de lado Vivi Mazinho com copo de café e um pão com manteiga. Peguei o pão e levei a boca; o café também. Estava com fome. Não tinha tomado café quando saí. Ele não disse mais nada, sentou-se ao meu lado e ficou me olhando, enquanto eu devorava o pão.
- Você está esfomeada mesmo, hein, menina !
- Esta fome a gente mata, Mazinho. Mas tem outra que corrói a gente e parece ser insaciável traço falei, enquanto engoli o pão e surgiu o café quente que queimava minha boca.
- Pra que tanta armadura, menina Carla?
- Estou com um problema sério, Mazinho.
- Estou vendo. Você não precisa dizer. Está escrito na sua cara. Quem viu você correndo e brincando nesse barco feito louca, olha agora é vê que parece que o mundo desabou na sua cabeça.
- Preciso falar com o Roger.
- Você sabe que ele não está aqui.
- Claro que sei.
- E você veio pensando que ia encontrar ele aqui?
- Não pensei nada. Acho que não penso mais, apenas faço. Só que nossos caminhos se cruzaram um dia, de repente cada um foi para o seu lado. Agora é preciso nossos caminhos se cruzarem novamente.
- Não faço isso, Carla. Não vale a pena. Depois do que ele fez para você, eu mandei ele embora daqui.
- Mas o que ele fez está marcado aqui! - exclamou quase chorando, batendo no peito.
- Esqueça isso. Toque sua vida. Estou tão feliz que você tenha voltado a ilha! Pensei que você nunca mais voltaria para essas bandas.
- Você não imagina como está sendo difícil para mim.
- Eu imagino.
- Olha o peixe! - gritou alguém lá na proa.
- Preciso ir assumir o leme. Me dá licença - e saiu correndo.
O barco, que mais parecia um barco fantasma, começou a ter vida. Todos correndo de um lado para outro. Aumentou a velocidade e fui obrigada a sair de cima da rede que eles começaram a preparar paajogar ao mar.
Vi que tinha muito lugar ali para mim. Num salto eu me penduram no mastro e subi sobre a cabine do meme. Ali estava tranqüila, assistindo a caça como mera espectadora.
- Lá! Lá! Olha lá! - gritava um dos rapazes quase se jogando no mar.
Acompanhei seu dedo indicador e vi uma mancha escura que de vez em quando ficava prateada. Era uma mancha enorme, mas parecia um monstro pronto para emergir. A rede foi lançada. O barco fez um enorme círculo em torno da mancha enquanto a rede era jogada. Uma canoa foi lançada ao mar com um pescador para fechar p cerco. Depois foi só puxar.
Milagre.
O mar dando o que comer. Foram tonelada de peixes prateados que brotaram da água. Entre gritos e espantos a rede foi puxada; estava cheia. Meus olhos brilhavam. Eu nunca tinha visto tanto peixe em toda minha vida
- Deus do céu, é muito peixe! A rede não vai agüentar! - berrava Mazinho, como se não estivesse acreditando no que via.
Começou a operação de retirada do cardume. Outros pescadores se lançaram ao mar, era preciso usas todos os braços para retirar os peixes da rede e jogá -los no porão cheio de gelo.
- Mazinho, aqui tem mais de quatro toneladas de peixes. Não vai caber tudo no Dragão - disse um dos rapazes que jogava os peixes no porão.
- Vou avisar na Central. Vou pedir que venha outro barco - ia entrando na cabine quando me vou lá em cima. Passou a não na cabeleira branca e sorriu. Depois falo: - Menina, você é uma talismã. Trouxe sorte para esse barco.
Ergui os ombros sem saber o que dizer. Mas estava feliz em ver a felicidade deles. Pareciam crianças que haviam acabado de ganhar o briquedo prometido.
Realmenteo Dragão foi pequeno para tanto peixe, seu porão estava abarrotado. O barco estava tão pesado que era possível esticar as mãos e tocar a água do mar. Se viesse uma tormenta, acho que o Dragão ia a pique.
Horas depois chegava outro barco que também enchera seus porões. Foi alegria em dobro. Todos eles, pescadores humildes, que viviam do dia-a-dia daquela pesca sem fim, faziam as contas do dinheiro que levariam para casa.
No fim recolheram a rede. O cheiro de peixe revendia pelo ar. Estavam todos exautos, caídos, famintos. Foi um dia inteiro de luta; brava luta contra o mar que resistia em entregar sua cria. Mas cedeu. Os homens venceram O cansaço e a quantidade de peixes. Do mar arrancaram todo o cardume, sem deixar um peixe sequer escapar. Haviam vencido de novo.
- Ninguém vai fazer comida? - reclamou um deles. - Estamos famintos.
Ninguém se animava. Eu também estava com fome. Se soubesse cozinhar me trancaria naquele cubículo que eles chamavam de cozinha e faria uma comida bem gostosa. Mas não sabia nem fazer café.
Um deles se animou, pegou ali mesmo alguns peixes perdidos no canto da proa e levou-os para cozinha. Eu estava ali do lado deles. Apareceu não sei de onde uma garrafa de vinho que rolava de boca em boca. Era um vinho seco, forte.
- Olhe, moca- falou- me um um deles. - faz meses que estamos perseguindo esse cardume. Esses filhos da mãe sabe muito bem como fugir da gente. Mas hoje nós pagamos eles. Não deu nem para o cheiro. Acho que foi a maior pesca da minha vida.
Todos concordaram. Não sei se acreditei no que Mazinho dissera - de eu ser o talismã eles - mas me senti meio que responsável por aquela pesca.
Mazinho tomou rumo da ilha. Era água que não acabava mais. Diante do mar não havia grandeza. Tudo parecia pequeno, insignificante. Principalmente os nossos sonhos e nossas arrogâncias.
Escureceu assim tão de repente que me deu a impressão que alguém havia roubado a luz. De repente, o mar que era azul ficou cinza e depois Preto. A lua apareceu com uma bola, uma roda de queijo parmesão, como dizia papai quando ela estava cheia.
Nem me dei conta, mais um cheiro gostoso de comida. Tomou conta do ar. Eu estava na proa, sentada na beira do parapeito, com um dos pés roçando a água espumosa que saia debaixo do Dragão. O rapaz que fizera a comida me Trouxera um prato cheio de macarronada com filé de peixe e um copo de vinho, do mesmo que estavamos tomando. Agradeci e comi com vontade ao mesmo tempo em que começava a avistar adiante as luzes das casas da ilha.
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Os caminhos de Carla
Non-Fiction"Com a cabeça recolhida na mochila ouvia passos. Eram os demônios que povoavam minha cabeça. Para fugir deles, pensei em pessoas bonitas, músicas alegres, sorrisos falsos de gente triste que caminhava pela Rua do Meio. Então fiquei pensando na minha...