XII

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     - Aonde você vai?- perguntou-me Marisa me segurando pela mão. Ela estava numa roda de meninos; do jeito que ela gostava.
     - Vou dar uma volta por aí. Está muito quente aqui.
     - Eu vou com você- falou Joana se levantando.
     - Não quero. Fique aí- falei demostrando certa irritação. Dei as costas e saí.
     A rua do meio era uma rua pequena. Não devia ter mais de cem metros. Era fechada ao tráfego de carros. Só pessoas circulavam por ali. Lojas de roupas, sorveteria, restaurantes; e o trapiche, o mais barulhento e badalado bar de toda a vila. A rua estava cheia. Tropeçava-se em pessoas. Rapazes e garotas bonitas. Saí e fui andar na beira do mar. Olhei os pescadores noturnos com suas varas com luzes coloridas na bóia que ficavam pipocando na água. Faziam um silêncio de mortos. De vez em quando um peixe era fisgado. Nada de comemoração nem comentário. Era preciso manter o silêncio; silêncio de mortos para atrair os peixes.
     Fui andando. De repente estava no píer. À noite ele era iluminado por luzes fortes , amarelas, que saiam das torres do iate clube que ficava ao lado. Uma luz berrante, quente, mais quente que a noite. Tirei as sandálias e fiquei sentada num pequeno patamar feito para embarque e desembarque dos pescadores. Fiquei passando os pés na água e pensando no vazio da minha vida. Foi quando ouvi um barulho de algo caindo na água. Levantei os olhos e vi que alguém nadava. Tinha acabado de pular de um barco. Era um barco verde e branco, com a proa pintada de vermelho e, do lado, escrito em letras grandes "DRAGÃO". Era um rapaz. Não dava para ver muito bem quem era. Seja lá quem fosse, eu não o conhecia, com certeza.
     Minutos depois ele subiu no barco novamente. Estava nu. De onde estava eu não podia ver bem, mas tive a impressão de conhecê-lo. Fiquei rubra com a visão. Nada de excitação nem medo, apenas sem graça, como se aquilo não estivesse acontecendo senão na minha imaginação. Ele ficou em pé na proa. Olhou em volta e acabou me vendo. Tirei o pé da água e fiz menção de me levantar e sai dali. Ouvi o barulho do corpo se chocando novamente com a água. Era ele que vinha nadando, agora, em minha direção. O que fazer? Não tinha o que fazer. Não podia correr. Não me sentia em perigo ali. Então fiquei parada esperando que ele, com braçadas fortes, se aproximasse.
     E ele veio. Chegou até mim. Grata surpresa. Era o rapaz do trapiche, aquele que tinha cantado canções que ninguém ouvira, apenas eu.
     - O que faz uma garota sozinha nesse lugar? - perguntou-me ele apenas com a cabeça fora d'água..
     - E o que faz um cara sozinho num lugar desses?
     Ele sorriu. Era o sorriso mais lindo que eu havia visto em toda a minha vida.
     - Fui buscar umas roupas lá no barco.
     Só aí notei uma sacola impermeável que ele trazia numa das mãos. Jogou-a para fora d'água, do meu lado.
     - Pensei que você fosse músico.
     - Ah! Eu sabia que te conhecia de algum lugar. Você estava no trapiche.
     - Você canta muito bem.
     - Não precisa mentir só porque estamos nos dois aqui sozinhos
     - Sério. Adorei ver você cantando - falei, descontrolada. Não sei onde arrumei coragem para falar aquilo assim tão de repente.
     - Está bem, vou fingir que acredito. Será que posso sair da água ?
     - Claro! Fique à vontade.
     - É que... - fez cara de cínico - estou meio pelado... Não sei se você entende.
     - Entendo - redagüi com cara mais cínica ainda. - E você quer que eu feche os olhos para que você possa sair da água em segurança.
     - Isso mesmo. Então tenha a bondade de fechar os olhos que estou saindo.
     Deu um pulo e acabou jogando água em mim. Coloquei as mãos na frente dos olhos. Ouvi apenas o barulho dele abrindo a mochila. Mas eu estava curiosa. Vestido ou não, precisava vê-lo. Então, disfarçadamente, virei o rosto e abri os dedos. Ele se secava. Um corpo fino, atlético, moreno. Era tudo que uma garota podia querer.
     - Qual o seu nome?
     - Carla. E o seu?
     - Rogério, mas todo mundo me chama de Roger.
     - Roger, o músico - completei.
     - Não. Roger, o pescador, o nada... você me parece uma garota bem novinha.
     - Tenho dezessete anos, não me acho nova.
     - Mas é nova por aqui.
     - É a primeira vez que venho a ilha.
     - Quantos anos você acha que tenho?
     - Cinqüenta - brinquei.
     - Quase isso. Tenho a metade.
     - Vinte e cinco.
     - Você é boa em matemática - devolveu ele a brincadeira; prosseguiu: - Pode tirar a mão dos olhos, já me vesti.
     - Quem disse que eu tapei os olhos? - respondi mostrando como eu tinha tapado meus olhos.
     - Quer dizer que me viu pelado?
     - Você não é o primeiro - menti, sem ficar vermelha. Estava me divertindo com aquela situação.
     Ele também se divertia com tudo aquilo. Aproximei-me dele. Tinha o cabelo molhado, colado na testa, pingando da camisa branca, puída, diferente da roupa que vestirá para cantar no trapiche. Ali, naquele momento, ele parecia um pescador. E olhava com paixão para o mar negro que sumia a nossa frente.
     - Você vai voltar para o trapiche? - perguntei.
     - Não sei. A princípio, não. E você?
     - Talvez. Não sei. Só se você for cantar de novo.
     - Uma apresentação por noite já é muito. Além do mais, nesse momento todo mundo deve estar bêbado lá. Ninguém vai prestar atenção.
     - Eu vou - falei. Ele me olhou sério, procurando saber se eu falava a verdade - juro - quase gritei para que ele acreditasse.
    Então ele sorriu, pegou na minha mão e fomos andando, assim, como dois namorados...
    

Os caminhos de CarlaOnde histórias criam vida. Descubra agora