VII

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     - Sonhando acordada, é?
     Levei um susto. A água do chuveiro entrou nos meus olhos. Enxuguei-os com as mãos. Daí deu pra ver Paulinho na minha frente, disfarçando diante da pia.
     - Já estou terminando - respondi meio sem graça. - Me passa a toalha, por favor.
     - Preparei um café para você. Vem logo se não esfria.
     Saiu e então eu pude ficar mais à vontade. Sequei o cabelo, vesti uma bermuda e uma camiseta. Não penteei o cabelo.
     Na cozinha do trapiche havia uma mesa no canto. Lá estava um copo de café com leite, pão e manteiga. Paulinho me aguardava do lado da mesa, como se fosse garçom. Realmente ele era um bom amigo, mesmo me conhecendo tão pouco, ou quase nada.
     Sentei-me e comi. Estava com fome.  Só ali, diante daquele pão recheado de manteiga foi que percebi que tinha fome. Uma fome leonina, não só de comida, mas de algo mais que me corroía por dentro.
     - Então? Não vai me contar o que faz aqui por essas bandas? Não são férias nem nada...
     - Vim para falar com ele.
     Paulinho ficou vermelho. Começou pela ponta do nariz. Sua pele clara demostrava antes de qualquer coisa o que o coração sentia. Então ele falou:
     - Você não devia, Carla.
     - Mas por quê?
     - Já esqueceu o que aconteceu? Faz tão pouco tempo...
     - Por isso preciso falar com ele. Não consigo esquecer. Não consigo dormir à noite.
     - E vai te ajudar ? Se falar com ele ?
     - Não sei. Você não imagina como está sendo difícil estar aqui.
     - Então por que veio?
     - Se você não faz questão da minha presença, eu vou embora. Procuro um hotel. De você eu só preciso que me diga onde ele está.
      - Não é isso, Carla... Deixa pra lá! Continue tomando sei café, depois a gente conversa. Não estou querendo estragar o seu dia, muito menos o meu.
      - Fique tranqüilo, não vim aqui para estragar seu dia. Só vim atrás de uma coisa.
      - Que coisa? O que o Roger tem com isso?
      - Não sei. Por isso preciso falar com ele. Mas deixa pra lá. Depois a gente conversa. Vou aproveitar e dar uma volta por ai, matar a saudade... - olhei em volta - Pelo jeito, a coisa foi boa por aqui ontem a noite.
     - Foi. Você sabe, o pessoal que vem aqui adora beber até altas horas. Era pra gente ficar aberto até o dia amanhecer. Mas começou a chover, o pessoal resolveu se recolher.
     Enfiei o último pedaço de pão na boca. Levantei-me. Olhei para o Paulinho com gratidão.
     - Obrigado o por ter me recebido.
     - Foi um imenso prazer. Quantos dias você vai ficar aqui?
     - Não sei ainda. Talvez eu vá embora hoje.
     - E se não for, você tem um lugar para ficar? - perguntou-me, segurando minha mão.
     - Não. Mas não se preocupe. Não vim aqui para dormir. Quando der a noite, eu me sento numa cadeira dessa e fico bebendo... Vou pegar minhas coisas lá no fundo, está bem?
     - Deixa elas lá. Vai resolver o que você tem que resolver. Se precisar pode usar meu quarto. Não tem problema.
     - Não quero incomodar.
     - Não é incômodo. Se te peço um coisa, não se meta em confusão.
     Encarei-o. Fiquei com vontade de dizer algo - mas dizer o quê? Então eu não disse nada. Ganhei a rua, Era quase meio-dia e a cidade começava a despertar debaixo de um sol forte. Comecei a rodar, entrando em ruas que antes não passara. Queria ganhar tempo, organizar as idéias. Saí de casa com uma ideia tão fixa, tão certa na cabeça: agora não tinha mais bem certeza se ela era tão fixa, tão certa como parecia.
     Então fiquei pensando naquele primeiro dia na Vila. Pareciam existir ali duas cidades: uma banhada pelo sol, onde as pessoas se escondem em casa ou nas praias; e outra quando o sol se vai e surgem pessoas como se do nada, brilhantes e alegres que povoam suas ruas. Não seriam vampiros em busca de felicidade?
     Entrei numa loja que tinha uma camiseta com desenhos de coqueiros e o nome da ilha. Comprei a camiseta. Olhei para o dinheiro todo amassado na minha opinião mão. Lembrei de mamãe me dando dinheiro. Papai havia dito que não me daria nenhum tostão para fazer esta viagem. Mamãe aproveitou-se da ausência dele e, a tarde, enquanto ele estava no escritório, ela foi ao banco, sacou dinheiro e me entregou. Não disse nada. Apenas jogou o envelope sobre minha cama. Mãe é sempre mãe.
     Saí, vestida com a camiseta colorida, tão colorida quanto o dia. A outra eu prenderá na cintura. Entrei numa livraria e fiquei vendo os livros com fotos e textos sobre barcos. Eram barcos tão bonitos! Perguntei o preço. Caro. Comprei assim mesmo. Saí de lá e fui me sentar na beira da praia, perdida entre as fotos do livro e a imagem dos barcos passando de uma lado para outro no mar.

Os caminhos de CarlaOnde histórias criam vida. Descubra agora