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WUXIAN
Parece que só estou dormindo há alguns minutos quando Lan Zhan balança meu ombro.
Não fomos para a cama tão tarde, mas assim que colocamos nossos sacos de dormir, continuamos conversando, e não tenho ideia de que horas eram quando finalmente cochilamos. Provavelmente é seguro dizer que o novo dia já tinha algumas horas quando finalmente sucumbimos ao sono.
—Wuxian, — Lan Zhan diz. — Acorde. Tenho mais uma coisa para lhe mostrar.
Ele parece irritantemente animado. Normalmente sou a pessoa da manhã, mas passamos por uma espécie de inversão de papéis nas últimas horas porque tudo que quero fazer é virar para o outro lado.
—Que horas são?—murmuro.
—Cinco e quarenta e cinco.
Jesus Cristo.
—Vá embora — eu digo.
Ele apenas ri. —Acorde, acorde — ele diz com uma voz monótona um segundo antes que eu sinta algo molhado em minha orelha.
Meus olhos se abrem enquanto me afasto de Lan Zhan. Olho feio para ele e esfrego minha orelha. —Você realmente acabou de enfiar o dedo com cuspe na minha orelha?
Ele arregala os olhos inocentemente. —Você não me deixou escolha. Você teria preferido um cuecão?
—Desafio você a encontrar minha cueca por baixo de todas essas camadas. — Aponto para meu saco de dormir.
Os lábios de Lan Zhan se contraem enquanto ele estende uma garrafa térmica. — Aqui. Uma oferta de paz.
A única fonte de luz na tenda é uma lanterna que Lan Zhan desligou. Pego a garrafa térmica e abro. O cheiro doce do café atinge minhas narinas. Esfrego a palma da mão no rosto e luto para sair do saco de dormir. O ar da manhã está frio pra caralho, embora eu esteja vestindo praticamente todas as minhas roupas, exceto a jaqueta. Até minhas botas ainda estão calçadas, caso contrário elas estariam geladas e meus dedos dos pés congelariam. Por que exatamente achei uma boa ideia passar a noite em uma barraca em março?
—Há quanto tempo você está acordado?— Pergunto a Lan Zhan assim que minha mente percebe que é hora de enfrentar o novo dia.
—Cerca de vinte minutos ou mais.
Olho ao redor para o ambiente ainda escuro.
—Por que exatamente acordamos antes do amanhecer?
Lan Zhan me dá um sorriso. —Você vai ver.
—Muito misterioso. — Visto minha jaqueta de inverno e sigo Lan Zhan para fora da tenda.
Não está tão escuro lá fora como dentro da tenda. Há leves indícios do amanhecer próximo no céu. A escuridão da noite está sendo lentamente substituída pelos tons azuis mais suaves do início da manhã.
Está frio o suficiente para que minha respiração saia em nuvens e meu nariz pareça que alguém o está beliscando continuamente.
—Merda, está frio, — reclamo.
—Vamos andando. Você se sentirá mais aquecido então.
—Há uma possibilidade distinta de que minhas bolas congelem.
—Tecnicamente, suas bolas têm que ser mais frias que o resto do seu corpo, então você está bem, — Lan Zhan diz.
—Há uma diferença entre estar frias e transformar suas nozes em pingentes de gelo.
Lan Zhan apenas ri disso.
—Para onde vamos?— pergunto enquanto o sigo por entre as árvores.
—Lá no alto daquela colina. — Ele aponta para o contorno sombrio ao longe.
Levamos cerca de trinta minutos para chegar ao topo da colina que Lan Zhan escolheu como destino. Está ficando mais claro, então posso ver o lago abaixo. A superfície cinza escura me faz sentir ainda mais frio enquanto estamos ali.
—Ok, — eu finalmente digo. —Estava aqui. O que agora?
—Agora esperamos, — Lan Zhan diz com um sorriso sereno.
—Por?
Ele vira a cabeça em minha direção. —Os ursos, meu sacrifício humano. Os deuses estão com fome.
—Ursos são seus deuses?
Ele zomba. —Não zombe, Wuxian.
Eu o empurro e ele começa a rir.
—Estou tentando não levar para o lado pessoal que você parece excessivamente fixado nessa ideia de deixar os ursos me comerem, — resmungo.
Lan Zhan dá de ombros. —O coração quer o que o coração quer.
Ficamos em silêncio por alguns momentos antes que ele me cutuque com o ombro.
—Você sempre tem que ter um plano e sempre saber qual é o próximo passo, mas por enquanto vamos seguir o fluxo. Você pode simplesmente ser. Não há prazos aqui, Wuxian. Apenas aproveite o momento.
Considero Lan Zhan por um segundo antes de voltar meu olhar para o lago. Ele tem razão. Eu sempre tenho que ter um plano. Nem tenho certeza se isso faz parte da minha personalidade desde o início ou se fui condicionado a ser assim por Cheng, mas é verdade que sempre sei qual é o meu próximo passo. Eu também sempre tenho um propósito. Eu não faço as coisas só porque tenho vontade.
A menos que eu esteja com Lan Zhan. Ele sempre consegue diminuir meu lado pedante e rígido, e é por isso que provavelmente adoro cada momento que passo com ele. Sempre.
Estamos na beira da colina. Nossos ombros estão pressionados. Lan Zhan está com as mãos nos bolsos da jaqueta. A ponta do nariz está vermelha e há um pequeno sorriso nos lábios. Lan Zhan está sempre sorrindo. Sempre feliz. É como se aquela pequena peculiaridade de seus lábios tivesse sido instalada nas configurações de fábrica.
Seu cabelo está coberto por um gorro. Suas bochechas estão vermelhas  Alguns fios de cabelo escaparam de debaixo do gorro. Tudo sobre Lan Zhan é dolorosamente familiar, e eu adoro isso nele. Ele é a pessoa com quem me sinto mais confortável no mundo inteiro.
—Lá vamos nós — Lan Zhan murmura, me arrancando dos meus pensamentos. Seus olhos ainda estão focados no lago. Tiro meu olhar dele e olho para onde Lan Zhan está olhando. O céu passou de um azul profundo e escuro para um roxo que está gradualmente se tornando vermelho dourado. Os primeiros raios de sol surgem no horizonte, pintando tudo ao nosso redor com ricos tons de amarelo.
Estou tentando me lembrar da última vez que olhei para o nascer do sol. Eu dei uma espiada atrás da minha mesa no escritório quando comecei meu dia de trabalho cedo, mas nunca realmente me concentrei nisso antes. O nascer do sol em meu escritório sempre foi apenas algo que meu cérebro registra que está acontecendo, mas nunca me fez afastar-me do trabalho.
Neste exato momento, não posso acreditar que descartei essa visão tantas vezes na minha vida. Acho que nunca assisti ao nascer do sol apenas por observá-lo. Talvez eu nunca tivesse se deixado por conta própria, mas Lan Zhan me deu esse momento aqui.
Não tenho certeza do que há de errado comigo ou por que este momento aqui me afeta tanto, mas de repente sinto como se estivesse perdido no mar. Não. Não no mar.
Sinto que estou perdido em minha própria vida, vagando sozinho e patético.
Mas assim que a compreensão chega, eu também a rejeito porque não parece cem por cento verdadeira. Eu não estou sozinho. Como que para me certificar disso, deslizo minha palma contra a de Lan Zhan e lentamente envolvo minha mão na dele. A cabeça de Lan Zhan se volta em direção às nossas mãos, e ele as encara por um longo tempo, com os lábios entreabertos. Deveria parecer estranho. Estou segurando a mão de Lan Zhan. Mas não é. Isso é bom. Certo. Perfeito.
Parece que ele está prestes a fugir por algum motivo, mas não posso permitir. Eu preciso dele. Preciso deste momento. Caso contrário, estou realmente perdido. Lan Zhan é a única coisa que faz algum sentido agora.
—Isso faz parte da sua campanha ‘Março é o melhor mês’?— pergunto para distraí-lo. Faço um gesto em direção ao sol.
Lan Zhan engole em seco e vira a cabeça em direção à magnífica vista à nossa frente.
—Claro. — A voz dele é rouca, e o som me faz sentir estranhamente consciente do fato de que Lan Zhan tem uma voz muito bonita. Suave e baixa e meio... sexy. Eu pisco.
Isso é novo. Talvez não seja a maneira mais comum de descrever seu melhor amigo. E, ao mesmo tempo, ainda parece certo. Eu desvio o olhar.
—Então você decidiu me dar o sol e as estrelas para provar seu ponto de vista? — Estou determinado a vencer os tons emocionais demais para o meu gosto desta manhã com humor.
—Tecnicamente, acho que não posso te dar o sol. Ou as estrelas, aliás — diz Lan Zhan, franzindo os lábios. —O mais próximo que eu poderia chegar seria comprar para você um daqueles certificados de nome por estrela. Você quer um? Porque nesse caso eu tenho o seu próximo presente de aniversário decidido com quase um ano de antecedência.
—Sim, isso é uma farsa. Não desperdice seu dinheiro.
—É?— Lan Zhan pergunta franzindo a testa.
Eu concordo. —A União Astronômica Internacional nomeia as estrelas, e eles fazem isso pelas coordenadas porque, caso contrário, os cientistas ficariam muito confusos, então, quando você compra o direito de nomear uma estrela, apenas a empresa da qual você a comprou reconhecerá o nome da sua estrela.
Lan Zhan levanta as sobrancelhas. —Como você sabe disso?
Minhas bochechas esquentam apesar do frio. —Eu leio coisas. Você sabe como é.
Lan Zhan me cutuca com o ombro. —Você comprou uma estrela para alguém, Wuxian?
Evito seu olhar conhecedor. —Eu… poderia ter tentado.
—Oh. — Ele parece estranho de repente. —Quem? Qing?
Eu balanço minha cabeça. —Não. Foi minha avó, — admito. —Eu tinha quatorze anos. Foi alguns anos depois da morte do meu avô. Achei que seria uma boa maneira de lembrá-lo.
A expressão de Lan Zhan suaviza quando ele aperta minha mão. —É doce.
Eu dou de ombros. —Sim, bem. Cheng disse que era uma farsa e para não desperdiçar meu dinheiro, então deixei por isso mesmo.
A boca de Lan Zhan aperta com a menção do nome de Cheng. Ele não é um fã. Ele não se importava muito com Cheng, mas algo aconteceu ao longo dos anos, e o relacionamento entre Lan Zhan e Cheng ficou cada vez mais gelado.
—É a ideia que conta — Lan Zhan diz com firmeza. —Acho que sua avó iria gostar.
Ainda poderíamos fazer isso, sabe? Talvez apenas não mencione isso ao seu irmão se ele vai ser um idiota com tudo isso.
Eu faço uma espécie de barulho de afirmação. Não estou com humor para trazer Cheng esta manhã. Eu me arrependo de ter mencionado isso, então eu o afasto da minha mente e me concentro novamente em Lan Zhan, pronto para mudar de assunto.
—Os cinco primeiros—, eu digo.
Ele parece confuso. —Os cinco primeiros o quê?
—Março. Está entre os cinco primeiros.
Ele sorri. —Sim? Eu fiz você reconsiderar com meus movimentos suaves, hein?
Eu concordo. —Sim. Você me seduziu a gostar de março. Bom trabalho.
Lan Zhan joga a cabeça para trás e ri. —Vai eu. Vou ter que analisar o que fiz lá.
Quero dizer, se eu consegui converter alguém que odeia Março como você, talvez eu possa finalmente conseguir um namorado com meus novos movimentos.
Uma sensação desconfortável de queda nas entranhas me faz prender a respiração.
Um namorado? Meu Lan Zhan em um relacionamento? Não, digo a mim mesmo com firmeza. Não meu. Ele é apenas meu amigo. Eu deveria querer coisas boas para ele. Então, vou fazer uma segunda tomada. Um namorado. Deixei a palavra se estabelecer em minha mente. Isso é... legal, eu acho. Lan Zhan merece alguém ótimo. Alguém com quem ele possa levar... em encontros e acampamentos e fazer todo tipo de coisas divertidas.
Alguém que vai me substituir.
—Legal. — Minha voz soa mais como um grasnido, e Lan Zhan me lança um olhar estranho. Eu sorrio. Provavelmente parece mais uma careta. Eu não entendo o que está acontecendo comigo. Tudo o que sei é que, à menção de um namorado, uma onda de algo que parecia uma mistura de raiva e ciúme tomou conta de mim. O inesperado coquetel de emoções deixou uma sensação desagradável dentro de mim. Estou sendo um idiota.
Lan Zhan é a melhor pessoa que conheço. Eu deveria querer que ele encontrasse a felicidade.
—Portanto... isso é algo que você quer, então? — pergunto hesitante, sem saber por que estou tão relutante em ouvir a resposta. —Um namorado?
Ele franze os lábios e olha para longe. —Acho que sim — diz ele com voz suave. —Seria bom ter alguém.
O que sou eu, fígado picado? Eu imediatamente quero perguntar, mas empurro as palavras para baixo. A agitação desconfortável dentro das minhas entranhas está ficando mais forte e não sei o que fazer com isso.
—Pronto para sair daqui?— Lan Zhan pergunta, aparentemente cansado daquele assunto em particular, e eu apoio cem por cento essa decisão.
Eu concordo. —Sou só eu ou está ficando mais frio?—Eu tremo. Está uma linda manhã. Não há nenhuma nuvem à vista e o sol está subindo lentamente, mas em vez do clima ameno de março, temos um teste na Antártida.
—Não é só você. Vamos indo. Podemos ligar o aquecedor do carro e descongelar os dedos dos pés — sugere Lan Zhan.
—Soa como um plano.
Caminhamos de volta para nossa barraca e entramos no carro. Ligo o motor e, depois de um tempo, os aquecedores fazem seu trabalho, enchendo o interior do carro com um calor agradável e quentinho. Meus dedos dos pés e das mãos não parecem mais que vão cair.
Mas quando olho para Lan Zhan e penso no comentário improvisado sobre encontrar um namorado, um frio estranho no fundo do meu estômago persiste.

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