O resto da tintura preta no cabelo de Lídia já estava desbotado demais. Há anos, ela não arrancava pedaços dos fios, que agora estavam longos e em sua cor natural: um loiro quase fosco. Faltava-lhe brilho nos cabelos e na vida.
Ninguém ali envelhecia. A bíblia jazia esquecida em algum canto. Agora, todos se reportavam a Isadora como líder. Apenas ela sabia quando sairiam, o que comeriam, se comeriam.
A mulher de olhos castanhos e barriga eternamente grávida passou em frente à porta do banheiro social, que ficava ao lado do refeitório. Do lado de dentro, Lídia cortava as pontas de um antigo cabelo preto tingido, cacheado e rebelde.
Levou tempo para que entendessem o quanto Isadora se obcecara pela pedra que Lídia havia encontrado no motor de uma das naves. Isadora acreditava que a pedra lhe falava, dizendo que seu bebê estava morto em seu ventre. Ela acreditou. Abandonou a fé em Deus e passou a crer nos maldizeres, obcecada em ouvir o objeto, que parecia ter vida. Nenhum dos outros – Bryce, Lídia, muito menos Catharina – conseguiu criar qualquer conexão com a coisa.
Levaram tempo para entender que, poucos dias após a pedra ser encontrada, Claus morreu subitamente, de uma forma que todos acharam suspeita. "Há algo de errado", pensavam, mas o luto e a loucura de Isadora ofuscaram qualquer teoria sobre o que realmente poderia ter acontecido ao homem loiro, que tanto a idolatrara enquanto vivo.
Logo entenderam que as unhas continuavam crescendo, defecavam, urinavam, os dentes sujavam e apodreciam se não escovassem, os cabelos cresciam... mas eles mesmos não envelheciam. Não sabiam se podiam morrer, mas tinham quase certeza de que aquela estranha condição estava ligada ao vínculo de Isadora com a pedra. Mesmo sem poder provar, e mesmo que ela se recusasse a falar sobre isso por muito tempo.
Lídia, pelo menos, nunca entendeu o porquê de Isadora ter seduzido Bryce e o escolhido como amante poucos meses após a morte de Claus. Entendia menos ainda o fato de ele ter aceitado. E recusava-se a pensar em como Bryce lidava com a barriga dela, que permanecia ali congelada há anos, contendo Deus sabe o quê.
— Está ficando linda com o corte — disse Catharina, sentando-se à mesa. Era a primeira frase que ela proferia em semanas. A voz saiu rouca e ruidosa, seguida de uma breve tosse.
Lídia achava que a amiga nunca sairia do estado de choque desde o dia em que a viu, de olhos arregalados, ao flagrar Bryce, seu próprio irmão, beijando Isadora com fervor em frente às telas, as mãos negras segurando a mulher grávida de um bebê há muito morto, como se a necessidade de tocá-la fosse vital. A cena a lembrava de Claus, o defunto que dera tudo àquela mulher.
E Catharina nunca conseguiu se revoltar. Aquilo parecia estranho demais, bizarro demais, para que ela pudesse processar. Então ela deixou de "estar" entre eles em alma, embora permanecesse ali em corpo, por muito, muito tempo.
Quando tudo aconteceu, na noite em que Claus foi encontrado morto com os membros retorcidos no corredor, Catharina não gritou. Apenas deu meia-volta, chamou Bryce e, inexplicavelmente, raspou a cabeça. Desde então, parecia uma caveira de olhos fundos e verdes, o rosto vazio, inexpressivo.
Estavam todos loucos.
— Acha mesmo? Que o corte está bonito? — Lídia quebrou o silêncio repentino, indo pegar o aspirador para se livrar dos fios pretos no chão. — Nunca gostei de ser tão magra. Agora então, com tão pouca comida, está pior.
Não obteve resposta. Catharina congelara novamente, o olhar perdido. Foi então que Lídia notou as manchas de sangue na blusa azul da amiga e os hematomas em seus braços.
— Cadê o Bryce, Cath? Cadê a Isadora? — perguntou calmamente, tentando não transparecer o pânico em sua voz.
— Tinha de ser feito. Ele não era o parceiro certo para a Isa. Era fraco. Ainda não é o certo. Ela me disse que não era o certo, e se não é o certo, então deve ser eliminado.
O mundo ficou lento. Lídia sentiu que ia vomitar.
— Cath... cadê a porra do Bryce? — perguntou, engolindo em seco, sentindo um nó na garganta. Ela temia a resposta.
— Ela o matou. O irmão dela. Para nos libertar. Não te contei porque você é muito emotiva. Foi para sua proteção. Amanhã sairemos daqui com ou sem você. Escolha um lado: cadáveres ou nós. — Isadora disse, surgindo entre as duas, acariciando o ventre protuberante, olhando fixamente para Lídia.
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Formação de Cinzas
Science FictionUm universo futurista que mistura romance, fantasia e ficção científica. Acompanhe Skirah em um mundo pós apocalíptico, onde humanos e híbridos lutam pra sobreviver.