CIGARRO (MEADOS DE 2100 - 2210) APROX. 40 - 50 ANOS PÓS INVASÃO

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Fizeram uma aposta, Ísis e Kate, depois de sobrevoarem o local ilhado meses atrás, e agora retornaram para saber qual das duas conseguiu ler aquela população.

— Sinceramente, acho muito difícil serem amigáveis. Você se lembra da última vez que sobrevoamos próximo a eles? Quando jogaram objetos em nós? E só estamos nós duas aqui. — Keterin disse para a colega de olhos cor de cinza ao seu lado.

— Eu não vou me acovardar só porque Ulysses não veio conosco, "Kete". Semana passada estive em uma fazenda, cuja dona, uma menina híbrida chamada... — Ísis parecia fazer força pra se lembrar do nome de Ylia.

— Para de me chamar de Kete, porra. É Kate. E não ligo pra fazenda nenhuma. Deveríamos ter ido direto pra casa, Ísis. — A morena baixinha, de pele bronzeada, respondeu e logo depois, como de praxe, amarrou um coque preto para conter os cabelos e começou a roer a unha.

— Mas estamos tão perto...

Um barulho enquanto tentavam pousar na areia perto do mar assustou as duas.

Keterin pareceu ficar desesperada. Empurrou a morena mais alta e pálida ao seu lado e assumiu o comando da nave.

— Eles são selvagens, não se parecem com antigos asiáticos corteses. Vamos embora.

— Não vamos. Somos pesquisadoras.

— Porra, Ísis, olha pra lá. Lá no meio, uma montanha de sei lá o que. Parecem cigarros empilhados. E essa galera bizarra? Mais bizarra do que aquele pessoal que a gente tentou catalogar, lembra? Quando chegamos lá, tava todo mundo vestido de branco, numa fila indiana pra esfaquear uma criança. Do nada! Graças a Deus você quis ir embora. Mas hoje tá louca!

— Talvez, se tentarmos aqui...

Lá fora, a população grunhia em suas roupas velhas demais, sujas demais, com dentes podres e cabelos emaranhados, sacudindo objetos em direção à nave.

— Viraram zumbis, Kete. Será isso? Zumbis?! Preciso anotar, me dá o caderno.

— Porra de Kete. Porra de caderno! Vamos embora daqui, Ísis!

***

— Foram embora? — O velho Akihiro perguntou, sentado na ponta da mesa de madeira escura bem lustrada, os cabelos brancos arrepiados, piscando um dos olhos que estava cego, coberto por uma película quase translúcida que ninguém ousou tentar tirar. Só Totsuya com um garfo. Mas estava bêbado demais no dia.

Estavam naquela tarde reunidos em uma sala iluminada por cores de luz branca que doía a cabeça dos anciãos. Uma reunião de velhos para discutir o testamento de Akumi, que logo morreria por conta da idade avançada.

— Sim, tio Akihiro. — Nanami respondeu, seus cabelos lisos castanhos se desamarrando e caindo sobre seus ombros largos, revelando o início de um grisalho, ao andar para o lado de sua velha mãe e apertar sua mão.

— Acreditaram de novo na encenação de vocês selvagens? — Totsuya perguntou, rindo sem os dentes para a sua filha que já tinha quase cinquenta anos de idade.

— Como sempre, foi muito convincente. Eles se divertem bastante com essa brincadeira. Principalmente sua neta.

— Minha neta... como está a Kaede hoje? — Akumi perguntou. Muito lúcida para sua idade. Porém, pouco estilosa se fosse comparada com sua versão mais jovem. Agora usava roupas velhas de vovó e um coque. Enfim, os setenta anos.

— Bem, mãe. Mas não acho que esse tipo de reunião seja importante agora. Posso pedir que a doutora Seyu deixe de dar as aulas para os novatos e venha examiná-la. Tenho certeza que constatará que você está bem.

— Sayuri nos deixou do nada. E estava bem. Akihiro chorou muito por isso. É melhor estarmos preparados para qualquer coisa que possa acontecer comigo.

— Eu não chorei. — O velho Akihiro resmungou, cruzando os braços flácidos sobre o peito.

— Para de ser rabugento. Você era mais legal antigamente e admitia ser um chorão. — Disse Totsuya, e Nanami riu.

— E você tinha dentes, velhote. — Akihiro falou, resmungando mais uma vez.

***

Estavam olhando o mar. Os dois idosos sozinhos, em mais um final de tarde onde paravam para ver o pôr do Sol.

— Acha mesmo que vai morrer, Akumi?

— Acho, Totsuya.

— Vou sentir sua falta.

— Já sente que eu sei.

— Verdade. Há anos não nos falamos direito, apesar de termos feito uma filha tão linda.

— Isso não importa agora. Você sabe... quando descobri que você e Sayuri tinham um caso foi o fim pra mim, mas não significa que não somos hoje em dia amigos apesar de tudo.

— Foi uma longa vida. Acho que devo a você desculpas, Akumi. Nunca te pedi perdão por me envolver com sua amiga.

— Já pediu sim, até demais. Você melhorou muito enquanto ser humano, dava pra ver. E foi um bom homem pra ela, como nunca tinha sido pra mim. Não há o que desculpar nesse ponto da vida. Fizemos o nosso melhor aqui.

— Sim. Nanami é incrível, maravilhosa, como nunca fomos.

— É. Ela foi criada por quatro pessoas que a amaram mais do que tudo. Era nossa luz, esperança e motivo pra viver. O pacotinho. Mas não falo só dela. Temos de tudo aqui. Costureiras, cozinheiras, artistas, médicas básicas. Tínhamos, no fim das contas, conhecimento e serventia acumulados de reabilitações que tantos de nós passamos. E levamos isso adiante. São cinquenta anos e alguma coisa, afinal. — Ela disse, olhando o mar com aquele rosto cheio de rugas que refletiam choros e alegrias de uma vida incrivelmente emocionante e longa.

— Nossos pais teriam orgulho de nós, Akumi. — Ele falou, então os dois choraram em silêncio. Porque seus pais teriam muito orgulho mesmo. E pela primeira vez na vida, na velhice, perceberam isso: o quanto os antigos estavam certos quando disseram que eles eram capazes de ser muito mais do que eram quando os dias se resumiam em matar aula da universidade, transar e usar drogas em becos sujos.

Entrelaçaram as mãos enrugadas. E aquela de fato foi a última tarde de vida de Akumi. E última semana de vida de Totsuya.

Mas tudo bem, porque morreram sabendo que seriam o orgulho dos seus pais.

Formação de CinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora