FÉ (MEADOS DE 2150 - 2160) PASSADO PÓS INVASÃO

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- Bom dia, Isa! Como estão os níveis de radiação lá fora? - Claus perguntou para a mulher branca e magra, com longos cabelos castanho-escuros, escorridos, soltos como uma moldura perfeita para seu rosto pequeno. Ela sorriu ao ouvir o som da voz dele, sentada na poltrona de couro, virada para uma tela entre outras duas, acariciando distraidamente a barriga que ameaçava crescer ainda mais.

- Nada de novo, amor. Seguimos aqui, presos. - Ela riu para o televisor que mostrava informações da superfície que ela não conseguia interpretar. Isadora não sabia dizer dos níveis ou quando as coisas melhorariam. Mas tinha fé.

O lugar era forrado por paredes brancas e luz pálida, lembrando um antigo consultório odontológico: claro, frio, muito chique e pouco aconchegante, com luzes embutidas no teto. Três poltronas de couro extremamente confortáveis estavam dispostas em frente às telas, e, atrás delas, ficava a porta que levava ao corredor, para o refeitório e os primeiros quartos daquele andar.

O homem de beleza europeia, branco, loiro, e dono de olhos azul-celestes, se sentou na poltrona ao lado direito da sua esposa. Uma mulher comum, branca, de olhos castanhos como uma barra de chocolate ao leite. E como ele sentia falta de chocolate. Não sabia mais como seria o gosto. A única coisa que permanecera era a lembrança do prazer momentâneo do sabor e os olhos de Isadora. A âncora que o prendia a outra vida, outra época, talvez até outra realidade.

- Às vezes, me pergunto se deveríamos tê-los deixado vivos. Os cientistas que estavam aqui quando... entramos. Mesmo que isso significasse um risco para o bebê que está dentro de você. - Claus disse, esperando que aqueles olhos marrons se voltassem para os dele.

- Entramos? Não seria melhor você falar "invadimos"? Talvez... matamos todos, incluindo crianças e mulheres que poderiam ter bebês dentro delas, assim como sua Isa tem? - Lídia falou ao passar pela porta, indo em direção à sala localizada à esquerda da mulher, onde ficava a escotilha que levava ao corredor íngreme que os conectava à superfície. E não ficou para ouvir uma resposta. Até porque geralmente não se davam ao trabalho de responder a ela. A nenhuma de suas provocações. Então ela ajustou o traje e se preparou para tentar, mais uma vez, atravessar a passagem.

Tinha se tornado um hábito sair de dentro do bunker, ou pelo menos tentar. Todos os miseráveis dias de sua vida desde que invadiram o lugar. Mas seguia cinza lá fora, irrespirável e provavelmente doloroso como há um mês atrás, como as imagens das câmeras externas e resistentes mostravam.

Lídia logo notou que provavelmente seria suicídio; portanto, desistiu de tentar sair. Sentou no chão, frustrada, enrolando uma mecha do cabelo ondulado, tingido de preto e embaraçado nos dedos magros e pálidos antes de arrancar um pedaço dos fios.

Lá fora não tinha nada. Nada além de frio e cinzas. Nenhuma vida, talvez nem prédios abandonados para cumprimentá-la. Era sorte terem aquele lugar.

Sorte não. Não havia lugar para sorte ali. Os mantimentos durariam mais alguns anos, talvez no máximo dez, levando em conta que o lugar fora feito para comportar pessoas ricas, cientistas e suas famílias. Um refúgio no subsolo para aqueles que antes tinham condições financeiras em vida.

Agora, isso não significava nada, e no passado logo os moradores daquele lugar, durante a evacuação de emergência, perceberiam que havia intrusos no bunker.

Os soldados ficaram do lado de fora. Não deu tempo de salvá-los. A Terra queimou muito rápido. Entre as outras cinquenta pessoas adultas e crianças, os quatro invasores viram, por meio das telas, o laser atingir o chão, a poeira subir e o fogo tomar tudo.

As câmeras externas não desligaram. Assistiram, diante de seus olhos, seus significados e ideologias queimarem junto das pessoas menos abastadas, que não tinham onde se esconder. Os deuses, dos menores aos maiores, dos mais cultuados aos quase esquecidos e varridos pelo tempo, assistiram em silêncio à quase extinção humana sem fazer nada.

Formação de CinzasOnde histórias criam vida. Descubra agora