REFÚGIO (Meados de 2200 - 2210)

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Cerca de cinquenta anos depois de ter encontrado seu lar, Ylia aparentava ter envelhecido no máximo uns dois anos em questão de aparência. Talvez a culpa disso fosse da sua vitalidade abundante.

Talvez. Ela não sabia, e também não se importava (e se Ylia não se importava, quem se importaria?).

Tinha mais dez vacas além de Iriko e Irika, que agora se reproduziam, mas apenas de vez em nunca, como se tivessem preguiça. O primeiro parto que Ylia teve de realizar foi quase um desastre. Mas nenhuma delas, suas vacas, morria. Nem seus bois, muito menos Neko, o gato, que às vezes olhava para sua tutora como se pedisse para morrer — mas esse desejo passava rapidamente. Ele parecia entender que a híbrida de olhos dourados não pretendia se livrar dele.

A solidão ainda a assustava. Ela não queria um grande amor, contudo não dispensava companhia de qualidade.

Logo, Neko estava novamente brincando e se divertindo pela fazenda, como se nunca tivesse voltado dos mortos algumas vezes, sempre na fase adulta (ele nunca morria de velhice; certa vez faleceu por ter comido uma drakna. Ylia não sabia que a fruta era tóxica para gatos. E se Ylia não sabia, quem ali saberia?). Coisas de um gato estúpido, julgava ela. E todos riam.

Naquela tarde, sentada em sua cadeira de balanço na pequena varanda de madeira, de costas para a grande janela azul que dava para seu quarto, observava as vacas pastarem e os companheiros, que eram aliens, híbridos e humanos, cuidarem das plantações. Mais à frente, avistou com seus ótimos olhos dourados uma nave aterrissar perto de seu terreno verde e plano, rodeado por uma vasta terra deserta. Sua fazenda estava literalmente no meio do nada.

Já era de se esperar que, algum dia, uma nave aterrissasse ali; afinal, era uma terra verde e feliz em um lugar que deveria ser morto e inóspito. Quase uma miragem. Contudo, não havia pânico. Ela sabia como lidar com visitantes novos. Sempre foi uma ótima anfitriã, e quando dizia isso, todos a aplaudiam no jantar. Como sempre.

— Quer que eu vá recebê-los? — Akhen, uma das suas mais antigas hóspedes, beirando os sessenta anos de aparência humana e segurando um gadanho enferrujado, perguntou ao se aproximar dela.

— Obrigada, mas não. Está descendo uma mulher sozinha, me parece humana. Saberei quando sentir o cheiro. Fique tranquila.

— Estará segura, menina? — questionou, apertando o cabo da ferramenta com suas mãos negras enrugadas.

— Sim, Akhen, e a propósito: fico feliz que seus olhos brancos ainda funcionem bem para ver à distância.

— Estou velha, mas não morta, nem cega. Sabe que desde antes meus olhos já eram assim — respondeu, de repente carrancuda.

— De fato — disse Ylia, sorrindo. Então apressou o passo, sabendo que, se precisasse, teria Akhen para proteger o lugar. Uma idosa noalien merch. Apesar de muitos demorarem para envelhecer, no caso dela, o DNA humano gritou mais forte.

Ylia passou por todos os seus hóspedes, cumprimentando-os com um sorriso no rosto e, é claro, sendo retribuída. Estavam quase todos concentrados nos pés de alface, que algum deles havia trazido como dote para a garota híbrida, para que ela o permitisse morar ali. Agora pareciam extremamente empolgados com o sucesso do plantio. Mesmo que não tivessem nada com o que se preocupar, Ylia jamais deixaria uma planta morrer em sua fazenda.

Um alien tríade e seus dois companheiros cortavam a grama alta, do outro lado da fazenda, longe das alfaces, de maneira quase coreografada, utilizando tesouras depois de desistirem de descobrir como o cortador automático funcionava.

Ao chegar em frente à pequena nave prateada e redonda, a mulher já a aguardava.

Vestia-se de forma comum: calça preta de tecido e uma jaqueta preta velha, como qualquer humana. Tinha cabelos pretos escorridos, amarrados em um coque muito bem feito, e olhos cinzentos. Cheirava como uma humana de sangue puro, apesar de Ylia já ter notado nela o odor das pedras que não permitia que entrassem em seu lar.

— Como posso ajudá-la?

— Meu nome é Ísis. Hoje vim só. Geralmente visito os locais que têm vida com meu grupo. Estou catalogando os lugares onde há funcionalidade vital com meus companheiros e, como aqui pareceu além disso tudo pacífico, resolvi vir falar com você sozinha mesmo — a humana esperou uma resposta, contudo, diante da expressão confusa da noalienígena, seguiu com a fala — Peço desculpas, mas nós já a observamos há bastante tempo, então dispensei o restante dos meus parceiros para averiguar sozinha. Portanto, pode me chamar de pesquisadora.

— Por que estão catalogando?

— Queremos libertar a Terra dos invasores, então precisamos mapear possíveis aliados fortes de espécies em comum.

— Então também sou invasora. Sou filha deles, como pode ver por meus olhos incomuns — Ylia disse. E se disse, quem iria questionar sua fala? Ninguém poderia.

— Você nasceu aqui, então é tão terráquea quanto eu.

— Bom, não há nada que vocês já não devam ter observado. Plantamos, colhemos, temos nossos animais, e aqui é bem conhecido, na verdade. Somos o maior abrigo para errantes que precisam descansar.

— Não tem medo de um errante mal-intencionado? Nunca conheceu algum assim?

— Sabemos nos defender bem, apesar de sermos pessoas da paz. Acredite. E não acho que eu precise dar informações sobre meu lar para uma humana que quer se livrar de invasores, contudo carrega um deles consigo — respondeu, ajeitando o macacão jeans que provavelmente havia pertencido a uma moradora há muito falecida daquela fazenda.

— Desculpe, acho que não entendi.

— A pedra. É uma forma de vida alienígena que se alimenta de seu povo. Quer se libertar servindo a algo assim?

— Não servimos a elas, nós as utilizamos como ferramenta. Mas acho que também não preciso ser interrogada por meus métodos agora, já que nesse momento só vim catalogá-los, como disse. Pesquisar.

— Todos que as usam são subjugados. Mas quem sou eu pra criticar senão uma mera fazendeira? Posso ajudar em algo mais?

— Só mais uma coisa, noalien.

— Ylia. Me chamo Ylia — a garota disse, posicionando a longa trança dourada sobre o ombro. Era muito mais do que uma simples híbrida. Era filha de Kyun, um alienígena bondoso. E quando dizia isso no jantar, todos os presentes se emocionavam com ela.

— Perdão. Ylia. É o costume de me dirigir assim a sua espécie.

— Sim, não tem problemas. Só prefiro que se refiram a mim pelo meu nome — a garota merch sorriu.

— Preciso da lista de moradores e saber como um lugar maravilhoso como esse resistiu às queimadas.

— Não tenho como passar uma lista. Estão sempre indo e vindo, mas pode colocar meu nome. Aqui é um lugar pacífico de descanso e reflexão. Não temos por que nos aliar nem ser contra ninguém. Boa sorte com sua missão. Mais uma coisa: aqui não resistiu à queimada, mas eu e os outros devolvemos vida a ela.

— Gostaria de saber mais sobre isso, talvez um outro dia — Ísis disse, repentinamente se sentindo cansada e arrependida por ter solicitado uma lista boba.

— Sinta-se bem-vinda para voltar quando quiser, jantar conosco e fazer um tour aqui no meu lar.

— Obrigada — Ísis respondeu, abrindo um sorriso, porque poderia esperar gentileza, mas não tanta assim. Ylia era mesmo surpreendente, como ela havia teorizado com Lucius antes.

"Será que ela percebe que, daqui a uns anos, será considerada uma líder de uma potência e não poderá mais estar debaixo do título de mera fazendeira?", perguntou-se a mulher, apertando a mão fria da garota de olhos cor de ouro derretido.


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