Segunda-feira, 18/05/2017
Quando eu tinha seis anos, passei por um grande trauma: fui sequestrado. Não me lembro de muita coisa, mas ainda tenho fragmentos daquela noite. Havia outro menino comigo, e o que vivemos juntos naquele lugar sombrio se tornou uma sombra na minha memória. Infelizmente, sofri um acidente no cativeiro. Meus pensamentos são borrões, flashes confusos — apenas me lembro de estar deitado no chão frio, o corpo fraco, e o rosto daquele menino, seus olhos castanhos cheios de lágrimas, enquanto ele chorava por mim. Logo, tudo escureceu.
São quase oito da manhã e estou no consultório do psicólogo, esperando a minha vez de entrar. Hoje fazem dez anos desde aquele sequestro que marcou minha vida. Depois do acidente, fiquei em coma por dois anos. Quando despertei, o mundo estava em silêncio e escuridão — eu havia perdido a visão. A última imagem que meus olhos guardaram foi o rosto daquele menino e seus olhos castanhos tristes.
Nos últimos dias, os pesadelos têm sido mais frequentes. As lembranças do sequestro surgem como fantasmas. Em alguns momentos, tudo parece desaparecer, mas basta um estalo e os pesadelos voltam, intensos. Logo sou chamado para entrar na sala. Após a sessão, volto para casa, pois ainda tenho aula à tarde.
Terça-feira, 19/05/2017
Hoje na escola, o dia foi cheio de surpresas. Recebi uma declaração de amor de um dos meus colegas, o Marcos. Ele me deu uma carta e, por um instante, o coração acelerou como se eu pudesse realmente vê-lo ali na minha frente. Ariana, minha irmã gêmea, está no banheiro; mal posso esperar que ela saia para que me leia a carta.
— Cadê, Ariel? — pergunta Ariana, ansiosa.
— Toma! — respondo, nervoso, entregando-lhe a carta.
Ela lê em voz alta:
“De: Marcos
Para: Ariel
Me encontra amanhã na pracinha perto da escola, depois da aula, é claro.”
Dou um grito de felicidade, o coração batendo forte.
A noite chega, mas não consigo parar de pensar no Marcos. Sempre o achei gentil e me surpreende imaginar que ele possa gostar de mim. Durante anos, achei que ele fosse hétero. Assumir que é bi aos quinze anos exige coragem, e penso em como será quando meu pai souber que sou gay. O medo e a esperança se misturam em meu peito. Não quero pensar muito nisso agora; só desejo que a noite passe rápido para que eu possa, enfim, encontrar o Marcos.
Quarta-feira, 20/05/2017
São seis da tarde, e estou contando os minutos para ver o Marcos. A sala dele fica ao lado da minha, e às vezes consigo escutar sua voz daqui, o que sempre faz meu coração bater mais rápido. O sinal toca, e Ariana me conduz até a pracinha. Noto que está vazia, pois não ouço ninguém ao redor.
— Ariel! — diz Marcos, sua voz vibrando.
— Irmão, vou te esperar lá do outro lado! — Ariana diz, afastando-se para nos deixar a sós.
— Eu queria muito fazer uma coisa com você — Marcos murmura, e sinto o calor em meu rosto.
— O quê? — respondo, nervoso, sentindo as bochechas esquentarem.
— Te dar um beijo! Posso? — ele pergunta, colocando a mão delicadamente em meu rosto.
— Sim… — sussurro, quase sem voz, enquanto ele se aproxima, sua respiração aquecendo minha pele.
Mas então, um grito feroz corta o ar:
— Ariel!!! — meu pai surge, furioso.
— Papai! — exclamo, assustado, tentando processar o que está acontecendo.
— Tira as mãos do meu filho, moleque! — ele grita.
— Papai, o que o senhor está fazendo aqui?
— Vem, vamos embora! — ele diz, puxando-me pelo braço com força.
— Ariel! — Marcos chama, sua voz cheia de preocupação.
— Cai fora, moleque! Vou resolver isso com você depois! — meu pai grita. Ele me empurra para dentro do carro e bate a porta, enquanto Ariana já está lá, chorando.
— Desculpa, Ariel, eu tentei te avisar… mas o papai chegou de surpresa atrás de mim! — Ariana diz, entre soluços. Não resisto e a abraço, também deixando as lágrimas caírem. Sinto meu mundo desmoronar.
Quando chegamos em casa, meu pai me joga no sofá da sala e ordena que Ariana vá para o quarto. O ar está pesado, cheio de raiva e decepção.
— Agora me explica o que você pretendia fazer! — ele diz em um tom alto, a fúria evidente.
— Tentando perder o BV! — respondo, tentando parecer firme.
— Com um brasileiro?!
— Peraí, então esse escândalo todo é porque eu ia beijar um brasileiro, e não pela minha orientação sexual? — pergunto, incrédulo.
— Essa gente é interesseira, meu filho. Você precisa se envolver com alguém da nossa classe social, e, o mais importante, da nossa descendência!
— Eu pensei que...
— Pensou errado! Assim como eu vou escolher para a Ariana, também vou escolher para você, sem exceção! — ele diz, como se minha vida fosse apenas mais uma decisão dele.
— Isso é um absurdo! Não estamos no século XIX! — grito, minha voz carregada de raiva e frustração. Em seguida, me levanto e vou para o meu quarto, onde as lágrimas não tardam a voltar.
Os dias passam, mas não tenho mais notícias do Marcos na escola. Acho que meu pai fez com que o transferissem. Os pesadelos voltaram com tudo, me perseguindo a cada noite e me roubando o sono. Ariana tenta ficar acordada para me fazer companhia, mas sei que está cansada. Como se isso não fosse suficiente, meu pai agora colocou guardas para seguir a mim e a Ariana em todos os lugares. A cada dia, ele se torna mais controlador e tóxico, tornando a convivência em casa insuportável. Sinto que estou aprisionado, com meu coração despedaçado e meu futuro sendo moldado por mãos que não são as minhas.
Terça-feira, 06/06/2017
Estou no consultório psicológico, e o Dr. Percebe as marcas nas minhas orelhas, indicando que algo não está bem. Pela voz dele, parece realmente preocupado.
— Ontem falei com seu pai. Ele disse que está preocupado com você, que um golpista tentou te seduzir! — comenta ele.
— Se ele diz… — respondo, cansado e sem paciência.
— Conversei bastante com ele, e encontrei a pessoa certa para te ajudar a lidar com tudo isso.
— Eu mal completei quinze anos e já querem me forçar a um casamento arranjado? — retruco, com uma ironia amarga.
— Olhe pelo lado bom, Ariel. Ele é de família rica. Era para vocês terem um encontro às cegas quando você completasse vinte, mas seu pai teme que você seja manipulado novamente.
— Nossa, um encontro às cegas com um riquinho metido… já estou até preparando meu espírito para as lorotas que ele vai soltar nesse “date”! — digo, carregado de sarcasmo.
— Isso não será problema. Ele não é muito de falar — o Dr. Responde, com um tom ligeiramente debochado.
— Como assim? — questiono, curioso.
— Seu pai o escolheu porque ele passou por traumas semelhantes. Ele também foi sequestrado na infância e, devido a isso, desenvolveu fobia social.
— Sério? — meu interesse aumenta, ainda que misturado com incredulidade.
— Sim. Ele tem dificuldades em se comunicar verbalmente — continua o Dr.
— Então vocês acharam que juntar um cego com alguém que mal fala seria a solução perfeita? Sei que meu pai é meio louco, mas não esperava que você ajudasse nisso, doutor.
— Eu não disse que ele não fala. Só tem dificuldade de interação social.
— E não é quase a mesma coisa? — questiono, frustrado.
— Quando ele se sentir mais confortável, vai se comunicar com você normalmente — o Dr. Explica, tentando me tranquilizar.
— E qual é o nome dele?
— Isso é algo para o qual você terá que ter paciência. Ele teve experiências traumáticas no cativeiro que envolvem o próprio nome.
— E você não pode me contar?
— Não. É algo que ele precisa superar e contar por conta própria, então não o pressione. Quando estiver pronto, ele dirá.
— E como eu vou chamar essa “criatura”? — pergunto, um pouco irritado.
— Pode chamá-lo de “hyung” — sugere o Dr. — É um termo coreano para irmão ou amigo mais velho.
— “Hyung”? Que legal… — murmuro, com um toque de deboche.
— Ele geralmente se comunica com estranhos usando a língua de sinais, mas como você é… bom… diferente…
— Cego, pode falar — respondo, seco.
— Ele é bem inteligente e sabe várias línguas, incluindo Libras, braille e código Morse.
— E como vou aprender código Morse?
— Faça um curso, meu filho. Seu pai te colocou nessa, então ele que banque. — O Dr. Dá um sorriso leve, e eu retribuo, pela primeira vez achando a situação um pouco interessante.
— Isso faz sentido… bom, aprender código Morse vai ser um passatempo curioso para conversar com meu futuro “noivinho”.
— Então você aceita o encontro às cegas?
— Claro, eu só obedeço meu querido pai, afinal…
— Tome, Ariel. — O Dr. Estende algo em minha direção.
— O que é isso?
— Uma carta em braille, feita pelo seu hyung.
— Sério?
— Ariel, vamos, já terminou seu horário — meu pai surge na porta, impaciente.
— Seu filho aceitou o encontro às cegas numa boa. Ele é bem obediente a você! — comenta o Dr.
— Ariel sabe que uma das suas obrigações é me obedecer, então isso não me surpreende.
— Pensei que meu padrinho fosse me buscar hoje?
— Seu padrinho teve que buscar Tae-mo no aeroporto. Ele chegou hoje da Inglaterra.
Meu pai me puxa pelo braço e me leva para fora. No caminho, meus pensamentos vão direto para Tae-mo, o filho do meu padrinho. A última vez que o vi foi no meu aniversário de onze anos, quando ele me empurrou de propósito, e eu caí de cara no bolo. O pior de tudo foi que ele riu alto e acabou puxando a risada de todos na festa. Ele nunca se desculpou, o que me deixou ainda mais furioso. Logo depois, foi estudar na Inglaterra.
Chegando em casa, corro para o meu quarto e começo a ler a carta.
De: Hyung
Para: Ariel
“Sempre ouvi falar muito de você. Já te vi algumas vezes no consultório do Dr., e soube o que você passou. Meu pai também se afastou um pouco quando me assumi gay, mas hoje está de boa. E o seu pai? Foi tranquilo ou ele surtou?”
De: Ariel
Para: Hyung
Meu pai nem ligou muito. Só não quer que eu me envolva com brasileiros. A verdade é que ele sempre controlou a minha vida, mas essa parte é um segredo nosso, ok? Vou te dar um voto de confiança. E você, já pensou em qual faculdade fazer? Afinal, você está terminando o ensino médio. Me conta, já tem alguma coisa em mente?
Terça-feira, 28/11/2017
Faz meses que troco cartas com o hyung, e confio apenas no meu psicólogo para entregá-las. Estou me dedicando ao curso de código Morse e já consigo entender quase tudo o que o hyung diz. Nosso encontro às cegas finalmente foi marcado, e a expectativa cresce a cada dia.
Domingo, 03/12/2017
Os dias passam, e o tão esperado encontro chegou. Ariana me ajuda a me arrumar, e eu escolho uma camisa branca com um moletom rosa. Sei que estou simples, mas é exatamente isso que quero: nada de parecer um riquinho metido, quero que o hyung veja o verdadeiro eu.
No caminho para o local do encontro, o hyung manteve tudo em segredo, planejando uma surpresa. Chegamos, e meu motorista me conduz ao ponto de encontro. O lugar está deserto; o silêncio me confirma que o hyung escolheu um local bem isolado, provavelmente por conta da sua fobia social.
— Chegamos, Ariel! — diz meu motorista.
— Tá bom, obrigado! — agradeço.
De repente, escuto um leve clique, e uma mensagem começa a se formar: o hyung está se comunicando comigo em código Morse, usando uma caneta para produzir os sons.
— Você está lindo! — diz ele, em pequenos cliques.
— Usando cliques de caneta, legal! — sorrio, tentando esconder a ansiedade.
— Quero que você adivinhe onde estamos. — ele continua.
— Não faço ideia, preciso de uma dica! Hyung pega minha mão e a leva em direção a algo. Exploro com os dedos e sinto uma superfície dura, com um formato específico que logo reconheço.
— É algo duro com o formato de um rosto de cavalo! — digo, animado.
— Sim. — ele responde, ainda com os cliques. Continuo explorando com as mãos, e sinto mais um cavalo, e outro. Espera... — Isso é um carrossel, hyung... nós estamos em um parque de diversões?
— Sim! — ele confirma.
— Aqui tem montanha-russa?
— Tem! — ele responde, e percebo o entusiasmo no ritmo dos cliques.
— Ah, eu quero ir!
Hyung puxa minha mão e começamos a andar pelo parque, que está vazio. Fico impressionado ao perceber que ele realmente alugou um parque de diversões inteiro só para nós dois. Quando chegamos na montanha-russa, entramos no carrinho, e finalmente escuto vozes ao nosso redor, apenas dos funcionários do parque. O carrinho começa a subir, e a expectativa cresce no meu peito.
De repente, descemos a toda velocidade, e escuto um grito ao meu lado. É o hyung. Pela primeira vez, ouço sua voz, mesmo que em um grito solto. Esse momento ecoa em minha mente, como se fosse um segredo que só nós dois compartilhássemos.
Depois de vários brinquedos, começo a me sentir um pouco enjoado, mas me recupero rapidamente. Agora estamos dividindo um sundae de chocolate, deliciosamente gelado e cremoso. Deitados na grama, tento imaginar o céu estrelado, e desejo poder enxergar o brilho das estrelas que, com certeza, estão iluminando a noite.
O hyung se aproxima lentamente, e sinto sua respiração quente próxima ao meu ouvido.
— As estrelas estão lindas esta noite... — ele sussurra bem baixinho, com uma voz suave que arrepia minha pele.
Surpreso, viro para ele, com o coração acelerado.
— Espera aí... você falou! — digo, atônito, com um sorriso tímido e o rosto quente.
Hyung ri baixinho, e o silêncio que se segue carrega um misto de admiração e cumplicidade. Essa noite, ele me revelou um pedaço de si que ninguém mais conhecia, e, por um instante, sinto que o universo inteiro está ali, conosco, compartilhando esse segredo de amor e coragem que nasceu em meio às sombras.
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Compromisso com terapia(Yaoi)
RomanceAriel e Tae-mo, dois jovens com passados complicados, se conhecem em um encontro às cegas e logo sentem uma conexão poderosa. Ariel, que é cego, é cativado pela presença silenciosa de Tae-mo, um rapaz com fobia social extrema que não fala em público...