Proteção

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UBUBI NON EST JUSTITIA, IBI NON POTEST ESSE JUS. 

Assim meu professor de Direito Penal terminou sua aula, com mais uma máxima que seria usada por mim e por todos meus colegas até o fim das nossas vidas, para os leigos em latim: onde não há justiça não pode haver direito. Para mim, existe uma distância imensa entre o que ouço e o que vivo, já que da ponte pra cá, como dizia Racionais, a justiça é outra e o direito também. 

Estou constantemente entre os dois mundos, o mundo ideal da Universidade Federal do Rio de Janeiro e o mundo real da Rocinha, em extremos que me fazem buscar um equilibrio quase impossível, mas que tenho certeza que me permitem ser cada vez melhor. 

Já eram 17h quando me despedi dos meus amigos na estação Central do Brasil, durante o percurso, aproveitava o tempo para ouvir algum podcast enquanto não chegava em São Conrado e me encontrava com meu amigo de infância: o Gui. Assim que saio do metrô, encontro com ele sorridente, me esperando com uma barra de chocolate nas mãos. 

– Hoje é meu dia de sorte? Metrô vazio e meu melhor amigo me esperando com meu chocolate preferido? - Brinco enquanto abraço ele. 

– Deixa de história, Julia! Eu vivo te mimando. - Ele gargalha beijando minha testa. 

Seguimos caminhando até o ponto de ônibus enquanto ele me contava todo o seu dia.

– E foi assim que eu passei o dia acompanhando as filmagens da novela das sete. - Ele completou. 

– Caraca, Gui... tem razão de você estar com esse sorrisão lindo, seu dia foi incrível. 

– Que nada, Ju... você sabe qual o motivo do meu sorriso todos os dias. - Ele diz me olhando sério. 

– Deixa disso, Guilherme! - dou um leve tapinha no seu braço tentando mudar o rumo da nossa conversa.

No caminho, continuamos falando sobre nosso dia, rimos um pouco e descansei no seu ombro. Quando descemos no pé do morro, o clima parecia normal e a movimentação tranquila, como já era habitual, passamos no bar do meu pai, seu Osmar, peguei minha quentinha e nos despedimos na porta da minha casa. 

– Passo amanhã às 05:40, beleza? Se cuida ai. - Ele grita entrando na primeira viela a direita.

– Me avisa quando chegar. - Respondo na mesma altura. 

Entro em casa passando pelo cômodo que minha mãe trabalha como costureira, encontro ela distraída com as clientes e tento não atrapalhar. O fim do dia passa com tranquilidade, faço o que precisa ser feito, converso com os meus pais, brinco com a minha cachorrinha e quando já se passavam das 21h30 lembro que no dia seguinte precisaria de um blazer para apresentar um seminário e o meu estava com a Gabi, minha prima. Troco mensagens com ela e decido ir buscar.

– Julia, vai num pé e volta no outro... não quer que eu chame seu pai? - Minha mãe exclama.

– Não, mãe... relaxa, deixa o papai descansar que eu volto rapidinho. - Respondo saindo pelo portão.

Subo num ritmo tranquilo e de longe escuto o som do baile, o movimento é pouco, quem não está no baile já está dormindo, passo por algumas pessoas e quando finalmente viro na viela da minha prima, o inferno começa. Escuto o tiro passar pelo meu ouvido esquerdo e me abaixo de imediato, ouço a resposta em instantes seguido dos gritos de comandos e dos foguetes anunciando que os homens estavam na área, ou melhor, que a policia havia subido. 

Nessa hora não existe fé que te faça ter esperança de sair vivo, não existe santo que faça milagres, não existe justiça e muito menos lei. Abaixada me enfio na viela e procuro desesperada por uma porta aberta, o som cada vez mais alto não impede que eu ouça meu coração bater acelerado. Vejo a frente um vão embaixo de uma escada e corro para me esconder, o alivio dura milésimos, no instante que entro sinto o cano do fuzil encostar na minha barriga, meu corpo gelar e tremer. Vejo com muita difculdade a caveira estampada na farda e grito em estado de pânico, tendo minha boca tampada no mesmo instante. 

– Tá maluca, garota? Quer morrer?  - O homem sussura me encarando.

Sinto as lágrimas escorrerem nos meus olhos. Aceno a cabeça negando desesperada. Ele tira o fuzil da minha barriga e me solta. Sinto minha respiração descontrolada.

– Eu quero me esconder, eu só ia na casa da minha prima... tenho um trabalho importante amanhã na faculdade. - Eu falo apreensiva evitando trocar olhares em meio as lágrimas. 

– Calma, calma, calma... - Ele repetia, se aproximando de mim e com uma voz mais serena. -

– Eu vou te ajudar a sair daqui – sussurrou ele,  enquanto olhava ao redor.  – Fica bem atrás de mim e não faz barulho. Não vou deixar nada te acontecer.


Com um movimento rápido, ele verificou sua arma e me puxou para mais perto. A tensão no ar era palpável, mas, existia uma sensação de segurança que eu não esperava sentir. Ele me fez sinal para seguir em frente, e assim fizemos, cada passo cuidadosamente calculado.

O som dos tiros e dos gritos se intensificavam, mas agora parecia distante, abafados pela urgência silenciosa de nossos movimentos. Finalmente, após o que pareceram horas, ele me levou a um portão lateral, quase invisível na escuridão.


– Daqui você vai conseguir sair – disse ele, empurrando o portão lentamente. – Corre e não olha para trás. Vai ficar tudo bem.Eu hesitei por um momento, a gratidão misturada ao medo nos meus olhos. Ele apenas assentiu, um leve sorriso tocando seus lábios e com uma mão leve me enxugou a última lágrima.– Vai. E, com um último olhar, procurei seu nome pela farda e encontrei: Nascimento.

Laços Invisíveis | capitão nascimentoOnde histórias criam vida. Descubra agora