Os demónios não são muito inteligentes

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Shax estava visivelmente indignada. Seu rosto distorcia-se em frustração enquanto ela gesticulava furiosamente.

— Como assim? Como é que ele escapou? — exclamou ela, a voz cheia de incredulidade.

Crowley, ainda em estado de choque e com um olhar distante, respondeu com uma nota de desdém.

— Vocês são mesmo burros — disse Crowley, o tom carregado de amargura. — Ele é um arcanjo supremo agora, o príncipe do Céu. Como é que esperavam que um simples ritual o mantivesse preso? E mesmo que conseguisse, Deus certamente viria a salvá-lo.

A verdade é que Crowley estava tão consumido pelo desejo de ver o anjo que nem se lembrou desse problema óbvio no plano. A presença de Aziraphale tinha momentaneamente ofuscado a sua capacidade de pensar com clareza, e agora ele sentia o peso dessa distração.

Shax lançou um olhar furioso para Crowley, mas sabia que não podia discutir a lógica. O fracasso do plano era inegável, e eles tinham subestimado completamente o poder de Aziraphale.

Dagon, ainda a tentar  processar a situação, olhou para Shax com um misto de preocupação e irritação. Shax, por sua vez, estava a tentar controlar a sua raiva, mas a frustração era evidente.

Crowley ficou em silêncio, observando Shax e Dagon tentarem processar o que acabara de acontecer. O seu plano tinha falhado miseravelmente, e agora Crowley estava no Inferno, sem saber ao certo o que fazer a seguir.

— E agora? — perguntou Dagon, com um misto de irritação e preocupação na voz. — Sem o anjo aqui, o que fazemos contigo, Crowley? —

Crowley encolheu os ombros, a sua fachada de indiferença mascarando a confusão interna que sentia. Não tinha pensado tão longe no futuro; o seu único foco tinha sido ver Aziraphale.

— Bem, isso não é realmente problema meu, vou-me embora — anunciou Crowley, a sua voz desafiadora, mas com uma pontada de cansaço. — O plano fracassou, e nem devia ter voltado ao Inferno em primeiro lugar. —

— Não podes simplesmente sair — protestou Shax, frustrada. — Achas que podes voltar aqui e partir quando te apetecer? —

— Claro que posso — retorquiu Crowley, com um sorriso desdenhoso. — Afinal, já não estou preso às vossas regras desde que me tornei um traidor.

Sem esperar uma resposta, Crowley virou-se e dirigiu-se para a saída. Sentiu os olhares de Shax e Dagon cravados nele, mas ignorou-os, focado apenas em deixar aquele lugar para trás indo em direção ao elevador.

Quando Crowley saiu do elevador, a brisa fresca da cidade tocou-lhe o rosto, uma lufada de ar revigorante depois do calor opressivo do Inferno. Olhou em volta, sentindo a familiaridade da paisagem urbana contrastar com o mundo infernal que acabara de deixar.

A livraria, convenientemente localizada ao lado do elevador, estava diante de Crowley. No entanto, ele não parou para visitar Muriel; em vez disso, passou rapidamente ao lado, como uma sombra a deslizar pela rua. A noite londrina envolveu-o, e Crowley mergulhou nos seus pensamentos enquanto caminhava.

As imagens do que ocorrera no Inferno giravam na sua mente. A visão de Aziraphale, capturado e traído, mexia com ele de maneiras que ainda não conseguia compreender completamente. Como tinham chegado a este ponto? Ele ponderava sobre o que tudo aquilo significava para eles e se havia um caminho para consertar o que fora quebrado.

Enquanto caminhava para casa, o néon das ruas piscava ao seu redor, mas ele estava imerso nos seus próprios pensamentos. Ao passar por um cinema, um dos filmes em exibição chamou-lhe a atenção. Era um filme de faroeste, e Crowley parou para olhar o poster por um momento.

"Os humanos são mesmo ridículos," murmurou para si mesmo, soltando uma risada leve. "Eles não sabem mesmo nada sobre os filmes que fazem." A ironia não passou despercebida; depois de séculos a viver entre eles, ele sabia que os humanos tinham uma visão única do mundo e da história.

Texas, 1887

À medida que o sol começava a se pôr no horizonte do Texas, o calor do dia cedia lugar à refrescante brisa do entardecer. Um homem entrou no bar, cujas portas de madeira rangiam com cada movimento. O bar era o típico estabelecimento, paredes revestidas de tábuas de pinho envelhecido, um chão de tábuas de madeira polida pelo tráfego constante, e um longo balcão de carvalho com bancos altos, onde os clientes se alinhavam para um copo de bourbon ou uma cerveja gelada. O ambiente estava iluminado pela luz amarelada de lâmpadas a óleo penduradas no teto, e uma jukebox de madeira, antiquada mas bem conservada, tocava uma melodia tradicional do Oeste.

O homem que acabara de entrar era distinto. Ele usava um chapéu Stetson de aba larga, de um negro profundo, com uma fita vermelha vibrante que o destacava. O casaco de couro preto, ajustado ao corpo e com franjas discretas, fazia um contraste marcante com o ambiente arenoso e quente do bar. Suas calças de sarja e botas polidas completavam o visual imponente, e o revólver no coldre era mais um acessório do que uma arma real.

O homem dirigiu-se ao balcão e sentou-se ao lado de um cavalheiro que estava de costas para ele, imerso em uma bebida. O novo cliente observou o companheiro de banco com interesse, e ao se acomodar, a visão do outro homem começou a se revelar.

O individuo ao seu lado vestia-se de forma mais alegre, mas igualmente condizente com o estilo do da altura. Ele usava uma camisa de algodão branca, um pouco desbotada pelo uso e pelo sol, com botões de metal polido que captavam a pouca luz disponível. Sobre a camisa, um colete bege com botões de madeira completava o visual. As calças, de um tom igualmente pálido de bege, eram ajustadas nas botas de couro castanho. Um lenço branco, amarrado ao pescoço, dava um toque adicional de suavidade ao conjunto, e um chapéu de abas curtas e cor creme completava o visual, tornando-o uma figura distinta entre os habitantes do bar.

— Olá, anjo — disse Crowley.

Chuva Ácida (Good omens)Onde histórias criam vida. Descubra agora