Memórias

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— Excelente trabalho, Aziraphale. Agora o inferno certamente estará distraído por algum tempo — Disse Metatron com um sorriso satisfeito. — Eles costumam demorar bastante para reconstruir as instalações, como é óbvio, não têm um sistema muito bom — Acrescentou, rindo consigo mesmo.

Aziraphale ouviu as palavras de Metatron vagamente, sua mente perdida em devaneios enquanto o tédio da reunião o consumia. Embora tivessem passado apenas cerca de três horas, para ele, parecia uma eternidade. As conversas dos arcanjos Michael, Uriel, e do seu assistente Gadiel, juntamente com as observações de Metatron, mal penetravam sua consciência. O anjo lutava para manter-se concentrado, desejando estar em qualquer outro lugar que não ali.

Metatron finalmente encerrou a reunião com um gesto solene. — Muito bem, concluímos por hoje. Que o senhor esteja com vocês. — Seus olhos se voltaram para Aziraphale com um leve aceno de cabeça, indicando que ele estava livre para partir.

Aziraphale sentiu um suspiro de alívio escapar de seus lábios. — Finalmente — Murmurou para si mesmo, enquanto se levantava da cadeira. O Anjo agradeceu aos presentes com um sorriso educado. E com um aceno breve, deixou a sala de reuniões para trás e começou a caminhar pelo corredor, em direção ao seu escritório. 

Os corredores do céu eram frios, embora não de forma gélida como os do inferno. Na verdade, as lendas humanas costumam descrever o inferno como um lugar quente e flamejante, mas isso é uma completa falsidade. O frio celestial não se assemelhava ao do inferno, era mais como uma brisa fresca, como se alguém tivesse ajustado o ar condicionado para o mínimo. Era um frio que mais incomodava do que congelava, causando arrepios que percorriam a espinha de quem o sentia.

Aziraphale detestava aquela sensação gélida que permeava os corredores celestiais. Ansiava pelos dias tranquilos passados na sua livraria, envolto pelo aroma reconfortante do seu chocolate quente e embalado pelas melodias suaves que ecoavam nos dias mais frios. Cada pensamento o levava de volta àquele refúgio acolhedor, onde encontrava paz e contentamento. — Ah, como um chocolate quente seria bem-vindo agora — Murmurou Aziraphale para si mesmo, desejando poder reviver aqueles momentos de conforto e aconchego que tanto ansiava.

Chegando ao seu escritório, Aziraphale afundou-se na cadeira confortável à frente da sua secretária. Um monte gigante de papelada aguardava por ele, parecendo ter se multiplicado desde a última vez que ali esteve. Com um suspiro resignado, Aziraphale mergulhou no trabalho, folheando os documentos e preenchendo formulários intermináveis.

Olhando para o lado, Aziraphale percebeu um objeto estranho sobre a sua mesa, quase escondido sob a pilha de papéis. Era um computador, algo que ele não estava habituado a ver no seu escritório celestial. Decidido a entender o propósito daquela máquina, chamou pelo seu assistente, Gadiel, que logo apareceu ao seu lado.

— Gadiel, o que é isto? — questionou Aziraphale, apontando para o computador.

— Ah, este é um computador, senhor. Ele sempre esteve aqui, mas talvez nunca tenha reparado. Estava sempre coberto pela papelada que tinha na secretária. É um recurso relativamente novo. Na sua posição como Arcanjo Supremo, os humanos podem orar diretamente a si. Este computador regista essas preces e, se for necessário, será notificado. — Explicou Gadiel.

— Interessante...Obrigado Gadiel, podes te retirar — disse Aziraphale, com um aceno de cabeça em agradecimento.

Gadiel assentiu e afastou-se silenciosamente, deixando Aziraphale sozinho diante do computador. 

Aziraphale voltou a mergulhar na papelada quando, de repente, uma notificação piscou no ecrã do computador. Intrigado, ele parou o que estava a fazer e direcionou sua atenção para a mensagem.

                                                                                             *
Crowley decidiu fazer uma visita à livraria de Muriel, um lugar que não frequentava há algum tempo. Ele se perguntava como Muriel estaria, considerando o tempo que havia passado desde a última vez que se viram.

Empurrou a porta da livraria com um sorriso nos lábios. Muriel estava atrás do balcão, organizando alguns livros, quando ergueu os olhos e avistou o demónio.  

O Demónio parou por um momento, observando o ambiente com uma mistura de nostalgia e melancolia. A presença de Muriel ao seu lado trazia certo conforto, mas também despertava sentimentos que ele preferia não confrontar.

— Senhor Crowley! Já não o via há tanto tempo! — Exclamou Muriel com entusiasmo, correndo para o demónio com um sorriso luminoso. — A Nina e a Maggie têm me mantido atualizade sobre a sua situação, eu estava tão preocupade! —

Crowley retribuiu o sorriso. — Ah, Muriel. Eu estive...ocupado — Respondeu ele, passando a mão pelos cabelos enquanto tentava parecer mais sério. — Mas não há necessidade de preocupações. Estou bem, como sempre. —

Muriel acena com a cabeça e anuncia. — Encontrei mais um dos diários do Aziraphale! Estava escondido lá atrás. — 

Um nó apertou a garganta de Crowley enquanto lutava para conter as emoções que ameaçavam transbordar. Com um esforço visível para parecer animado, ele respondeu — Isso é maravilhoso, Muriel! Vou dar uma olhadela mais tarde, se não te importas. Tenho algumas coisas para resolver primeiro. — Muriel, assentiu alegremente.

Crowley guardou o diário oferecido por Muriel no bolso interno do seu casaco. Ele sabia que enfrentar as memórias contidas nas páginas seria uma tarefa difícil, talvez até dolorosa. Mas, por mais que tentasse resistir, a curiosidade o impelia a ler.

Despedindo-se de Muriel com um sorriso forçado, Crowley saiu da livraria, mergulhando nas ruas movimentadas de Londres. 

                                                                                                      *

De regresso ao seu apartamento, Crowley sentou-se na sua poltrona, segurando o diário de Aziraphale com as mãos trémulas. Olhou para a capa gasta, a capa exibia a inscrição "Diário - Volume 134".

Crowley abriu o diário em uma página aleatória e deparou-se com a entrada "França 1793" no topo.

"Querido diário,

Ontem, algo realmente notável aconteceu, o demónio Crowley veio-me salvar de uns arruaceiros que estavam decididos a fazer-me mal, sabe-se lá porquê.

Fiquei tão aliviado quando o vi! E, como forma de agradecer, convidei-o para um lanche. Comemos uns crepes deliciosos e depois demos um passeio pelas ruas de Paris."

Crowley lembrava-se desse dia como se fosse ontem.

Chuva Ácida (Good omens)Onde histórias criam vida. Descubra agora