៚ Alice Trindade.
— Por que te abates, ó minha alma? E te comoves, perdendo a calma? Não tenhas medo, em Deus espera. Porque bem cedo, Jesus virá.
Dei encerramento ao culto de hoje, com o hino 193 da harpa cristã. Desci do pupilo e caminhei até o lado de fora da igreja, me juntando às irmãs que também já estavam de saída.
— Você tem uma voz muito bonita, Alice — irmã Lana me elogiou, de longos cabelos pretos e olhos escuros — Deveria cantar mais vezes.
— Obrigada. Sua palavra de hoje também foi muito bonita — retribuí o elogio, com um sorriso simpático.
— Claro, menina. Não esqueça do versículo que citei: 1 João 3:8, Aquele que pratica o pecado é do Diabo, porque o Diabo vem pecando desde o princípio. Para isso, o Filho de Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo — Lana repetiu para mim o que tinha falado durante o culto, a escutei com toda minha atenção. Não há nada que me interesse mais que a palavra de Deus — Na sua idade, é ainda mais difícil resistir. Mas não se deixe levar.
A irmã é uma amiga de longa data da mamãe, pelo que diz já me pegou nos braços quando era bebezinha. Lembro que quando morávamos no centro da cidade ela já apareceu algumas vezes para a célula evangélica.
— Obrigada, irmã. Vou lembrar disso para sempre — nos unimos num abraço rápido — Já passou das dez, é melhor eu ir. Essa hora o caminho até o morro é perigoso.
— Vá com Deus. Até domingo que vem — assenti e me afastei em passos curtos da igreja.
Morar na favela não é nem de longe fácil, mas tive que me acostumar a essa nova rotina de vida após o acidente do papai. Juntos, mamãe e o pai conseguiam manter uma vida boa na cidade, mas sozinha a mãe não conseguiria, ela trabalhava com coisas pequenas, como revendedora, então só tivemos essa opção. Atualmente ela tem uma lanchonete no complexo, vende almoços, salgados, todas essas coisas.
Meu maior problema não é o lugar de baixa renda, nunca fui de classe média pra virar uma mimada a esse ponto. O problema é os bailes, os traficantes, absolutamente tudo me incomoda. Mas ciente de que esse é o território deles e a intrusa mesmo depois de 10 anos vivendo aqui sou eu, evito sair de casa e tento reclamar menos.
É da escola pra casa, de casa pra igreja, e no outro dia de casa pra escola. É essa minha rotina. Não acho ruim, até porque não é como se tivesse outras opções, não sou boa com amizades, geralmente me fecho e não faço nenhum esforço para que alguém me conheça melhor. Minha pele é bem pálida declarando o pouco sol que recebo, mas digo e repito: Não acho ruim, estou bem levando a vida assim. É minha zona de conforto.
Passei pela entrada do Complexo do Alemão, e segui subindo entre becos. Era um longo caminho e minha casa ficava lá em cima, tinha que ter forças nas pernas para não desistir na metade, claro que com o tempo acabamos acostumando, mas alguém que vier aqui pela primeira vez, pode dizer que passou por uma prova de resistência. E não estou exagerando.
Franzi o cenho para a movimentação repentina que começou a minha volta, por aqui tem sempre gente na rua, crianças, velhas fofoqueiras, os marginais.. Mas sempre estão calmos, brincando, andando.. Só que agora, estão correndo. Portas batendo, estão trancando suas casas, traficantes descendo o morro armados, e foi quando os primeiros fogos de artifício chegaram ao céu que entendi: Está começando uma invasão.
Foi questão de segundos para o primeiro tiro soar, e foi questão de menos segundos ainda para que eu perdesse as contas de quantos tiros foram disparados. Merda, e agora? Eu começo a correr? Ainda estou longe de casa.
Foi isso que fiz, comecei a correr sem olhar para trás, com a bíblia embaixo do braço direito. Deus, por favor, me salve daqui.Prendi o fôlego ao pôr impulso nas pernas, na tentativa de que assim canse menos, eu já estudei educação física o suficiente para saber que eu deveria exercitar o meu corpo, mas sempre ignorei e continuei trancafiada dentro do quarto, lendo ou assistindo.. Mas agora que minhas pernas tremem de dor, percebo que meu maior erro foi não ter feito os malditos exercícios, sou uma sedentária.
Não contive um grito apavorado quando alguém segurou meu braço com força, me fazendo parar. Socorro, Deus. Não quero morrer agora, não posso. Fecho os olhos, sem coragem para encarar a morte me dando "olá", estou horrorizada. Tiroteio sempre me assustou, as vezes fujo para a cama da mamãe no meio da madrugada quando começa os tiros.
— Que porra tu tá fazendo? Tá querendo morrer? — arregalei os olhos com a exasperação daquela voz masculina. Dei de cara com um traficante, cheio de tatuagens, pele branca, olhos escuros e o cabelo tão escuro quanto — Rala pra casa.
— Eu.. Eu estava. Meu Deus! Eu estava indo — a guerra dentro de mim entre falar e recuperar o fôlego me fazia tropeçar nas próprias palavras — Fica no alto, eu estava correndo pra lá e..
Os tiros ficaram mais altos. Estavam chegando perto de onde eu estava. Se eu não sumir milagrosamente daqui agora, minha vida vai estar acabada amanhã.
— Entra aqui — ele me puxou para dentro de algo que mais parecia.. Socorro, aqui é a boca de fumo, com certeza. Meus olhos estavam a ponto de cair no chão, encarei os bandidos armados, todos escolhendo seus armamentos e saindo em velocidade — Não sai agora.
— Bora Gv, tão subindo, caralho — um dos outros marginais chamou o bandido que tinha me arrastado. Meus olhos se arregalaram mais, se é que é possível. Eu poderia não saber muito sobre o tráfico, mas as paredes têm ouvidos, todo mundo conhece o tal do GV aqui nesse morro. Óbvio, o dono dele.
Dei dois passos para trás, assustada. Por Deus, onde eu vim parar..
— To indo, satanás. Porra.. — respondeu, enquanto vestia um dos coletes que estavam jogados em cima da mesa — Aqueles otários sabem que não aguenta com a gente, mete bala em quem subir e acabou.
Quanta maldade, violência.. E chamar alguém de satanás?! Pelo visto eles não estão nem aí para respeito com o próximo. Preciso sair daqui, Deus do céu.
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No Morro do Alemão
RomanceQuando o quente e o frio se misturam, ocasiona um choque térmico. Então, o que mais poderia acontecer no encontro de duas almas tão diferentes? De um lado há Alice, uma menina doce e ingênua, tem seus princípios e segue o caminho de Deus no evangelh...