· No mercy

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Satoru Gojo

O sol está se pondo quando alcançamos a costa. A visibilidade está intensamente reduzida; os tons alaranjados e escurecidos do céu não são suficientes para cruzar a copa das árvores e nos dar uma boa visão do trajeto sinuoso à nossa frente, então nossas lanternas estão ligadas.

Depois de encontrar o demônio no lago, nos apressamos pela encosta do riacho, praticamente correndo para chegar ao
fim dessa jornada o mais rápido possível.

Não quero continuar na floresta por mais tempo do que o necessário, e sei que Suguru sente o mesmo, embora tenha ficado calado desde que vira a criatura de sombras flutuando. Flutuando. As pessoas do colégio já não acreditaram que alguém tentou me matar na piscina, o que achariam se contássemos sobre um
monstro feito de escuridão voando sobre o riacho?

Pensar nisso é tão absurdo que não consigo evitar rir. Como minha vida deu tão errado?

O som das ondas quebrando na praia se torna mais intenso a cada centímetro que avançamos. Tomando a dianteira, sou o
primeiro a ter o vislumbre amarelo da areia entre as árvores. Corro em sua direção o mais rápido que consigo.

— Satoru, Satoru! — grita Suguru atrás de mim, e também começa a correr. Sua voz parece mais assustada do que preocupada. — Espera, droga!

Cruzo as últimas árvores e, então, entro no largo espaço vazio da praia. Ao redor, há uma delimitação clara entre floresta,
praia e mar. A areia suja meus sapatos, o horizonte parece um quadro expressionista, quase inacreditável. O oceano está agitado: as ondas azul-escuras detêm certa agressividade, se erguendo altas até a costa, onde quebram com violência e se desmancham numa espuma branca.

Esse é o mais perto da liberdade que chegarei até conseguir falar com alguém de fora.

Suguru se aproxima, ofegante, e toca meu ombro. Também analisa a paisagem serena e límpida, maculada apenas por algumas coisas presas na areia úmida mais próxima ao oceano. Parecem vários objetos aleatórios, todos difíceis de identificar de
onde estou.

Todos, menos um.

O mundo gira ao meu redor. Fico nauseado, mas corro até os objetos, me afastando do toque gostoso de Suguru, me sentindo anestesiado a cada passo.

Me ajoelho na areia, em meio aos entulhos, ao lado de uma das malas de Calvin, aberta, rasgada, suja e molhada. Trêmulo, passo a mão sobre a superfície, meu coração se partindo em pedaços tão pequenos quanto os grãos de areia que me cercam.

— São as coisas dele… — explico, baixinho, para Suguru quando sinto sua aproximação —, as coisas que desapareceram do quarto.

Além da mala aberta, reconheço suas roupas e seus sapatos. Um pouco enterrada na areia, vejo a lanterna que, quando
lembra, ele carrega em nossas viagens – esquecida na bagagem. Apanho-a, tentando segurar as lágrimas, e mexo no interruptor.

Não funciona mais.

— Tem certeza? — questiona Suguru.

— Sim… Eu… — Inspiro fundo. Também na areia está a polaroide que ele sempre guarda na carteira. Pego-a. Em meus
dedos, percebo que está manchada de sangue. Suguru se inclina sobre meu ombro para observar os dois garotos sorridentes na imagem. — Tiramos essa foto no aniversário de doze anos dele. Foi a última vez que comemoramos com uma festa. Desde então, ele prefere passar os aniversários sozinho.

Ele retira a foto das minhas mãos para olhá-la mais de perto.

— O que significa isso, Satoru? Todas essas coisas?

A brisa fria e sem misericórdia do mar do crepúsculo açoita meus lábios, meus olhos, meus cabelos. Parece tentar me agredir.

Passo a língua sobre a pele rachada em minha boca e me sento na areia. Abraço meus joelhos, fitando o horizonte cruel.

— Significa que estou certo. Significa que eu e meu irmão entramos de cabeça num abatedouro. E eu não estava lá pra protegê-lo.

— Não pense assim.

— É a verdade. Eu não pude protegê-lo… quando ele mais precisava. Eu tentei tanto, tanto… e acabei falhando. — Todas as
vezes que fomos castigados pelo nosso pai me vêm à mente num só golpe. Todas as vezes em que fui desatento ou negligente com ele. Todas as vezes em que fui rude e estúpido. As lágrimas descem como uma correnteza. — Ah, eu sinto muito… —
Encubro o rosto. — Sinto muito, Calvin. Se estiver me ouvindo, saiba que sinto muito.

— Ele não tá morto. Nós vamos achá-lo. — Suguru envolve meus ombros e me aperta. Sua voz é tão segura, gostaria de poder acreditar nela.

— Não sou idiota, Suguru. — Me desvencilho dele e me levanto. Olho para o que restou do meu irmão ao redor, atirado
na areia como lixo. — Depois disso, acha mesmo que há qualquer chance do Calvin estar vivo?

Ele não responde à pergunta. Em vez disso, abaixa os olhos para a polaroide outra vez.

Não. Seu corpo diz. Não há.

Me volto ao mar novamente.

— Eu preciso falar com o meu pai — digo, estremecido pelas lágrimas. — É minha última esperança. E eu não acho que o Toji vá mesmo ligar pra alguém. — É mais uma divagação para mim mesmo do que para Suguru, já que sei que seu pai não vai poder nos ajudar agora.

Estou devastado, irado e frustrado. Meu pai devia mesmo ter nos matado e atirado no oceano; pois assim toda essa desgraça seria poupada.

— Ainda há uma chance. — A voz de Suguru, acuada e hesitante, soa sobre o barulho das ondas se quebrando próximo a nós.

Ele ergue a nuca para me encarar.

— O que você quer dizer? — pergunto.

— Eles tomam nossos celulares quando entramos na ilha — faz uma longa pausa, durante a qual seus olhos vagueiam pelo
céu, areia, floresta e mar —, mas há uma pessoa que consegue burlar os seguranças todos os anos.

Uma faísca de esperança desperta dentro de mim.

— Quem?

E então é pulverizada quando ele responde:

— O Sukuna.

-» Entre neblina e desejo / SatosuguOnde histórias criam vida. Descubra agora