Praia.

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Felipe Zaghetti


Foi preciso apenas alguns dias e tarefas bem sucedidas para conseguimos um dia fora do hospital. Aquele que almejamos por tanto tempo. Eu e Tarik somos uma das melhores duplas daqui. Jamais imaginei que me daria bem com algum paciente. Ter me mudado para o seu quarto, foi a melhor decisão da minha vida. Nossa relação vem sendo cada vez mais estável. Confesso me sentir bem ao seu lado. Somos o aposto, mas ao mesmo tempo, tão parecidos. O lado bom de estarmos juntos, é saber que um entende o transtorno do outro. No início, foi um pouco difícil lidar com a relutância dele em comer, mas com o passar do tempo, principalmente com os sermões de Rafael, fui entendendo que isso não é sua culpa. Por culpa da minha doença, sou uma pessoa bem temperamental. Posso me sentir bem, mas daqui a cinco minutos, isso pode mudar totalmente. O melhor, é cada um respeitar o espaço do outro. Através dessa dinâmica que conseguimos nos aproximar cada vez mais, por incrível que pareça. A morte de Mikhael ainda é muito recente e ouço-o chorar durante as madrugadas, mas não consigo dar o devido apoio que ele precisa. De qualquer forma, é necessário ter paciência com Pacagnan. Mesmo sendo muito carinhoso, é sensível na mesma proporção. Felizmente venho sabendo lidar com isso.

— Já pegou tudo? Você sempre se atrasa! — Logo pela manhã, já começo a receber sermão de Tarik. Sempre um ótimo incentivo para começar o dia bem. Se ele não se estressar por algo que faço, já sei que tem algo estranho.

— Relaxa, amarelinho. — Digo em um tom irônico, me lembrando do quão ele odeia esse apelido, que acabei lhe dando, após o mesmo usar o seu moletom do pac-man por uma semana seguida. Só vejo-o correr freneticamente pelo quarto, verificando se não tinha esquecido nada. — Não sabia que sua anorexia era literalmente nervosa. — Tenho a sua reação imediatamente e não pude deixar de soltar uma gargalhada. Brincar com nossas próprias doenças, faz parte do tratamento.

— E eu não sabia que sua esquizofrenia impedia você de saber se sou real ou não. — Ele cruza os braços, parecendo me desafinar. No fim, é difícil dizer qual transtorno é pior. Me dou por vencido e termino de organizar minhas coisas, antes mesmo dele se preparar para me dar outro sermão.

"Praia", capítulo trinta e sete.


O local não fica tão longe, por isso, em conjunto, decidirmos ir andando. Dessa vez, Rafael não viria conosco. É algo especial para nós, que nos dedicamos para ter um momento longe do hospital, sem alguém para nos monitorar. O clima está ameno e a areia é muito boa para pisar e caminhar. Tarik parecia uma criança grande, correndo para todos os lados. Difícil conseguir acompanha-lo. O meu jeito de aproveitar é diferente, por isso, procuro por uma sombra para ne sentar e ler um livro, enquanto ouço o mar. Sempre me certificando que Pacagnan não correu para tão longe, porque não queria ouvir Rafael brigando comigo por ter perdido ele de vista. Optamos por vir em um horário que sabíamos que não teriam tantas pessoas, assim poderíamos ter mais privacidade para aproveitar. Infelizmente, nossas aparências não são das melhores. Somos pessoas doentes e isso é bem notável. Os olhares sempre são diversos: Pena, nojo ou curiosidade. Como já vivo assim há anos, sei lidar de maneira bem mais fácil do que a de Tarik, que ainda não tem noção do quanto de tempo passará por lá. Ele viverá um dia de cada vez e sua mente em si, irá entender isso aos poucos, sem alguém precisar dizer. Não demorou mais do que poucos minutos para ser interrompido pelo mesmo, que já se encontra molhado dos pés até a cabeça.

— Vem comigo! Você tem todo o tempo do mundo para ler no hospital! — Naquele momento, não pude recusar o pedido, até porque, ele está certo. Vamos correndo até a água e pulando algumas ondas. São esses momentos que prefiro colecionar e ter em minha memória, independente de como tudo esteja. Nessa altura, não me importo de não sair do hospital, até porque, minha vida vem sendo moldada nele. Sair de lá é um pouco desesperador, quando paro para pensar. O mundo é muito novo para uma pessoa como eu, e talvez, nunca irei estar realmente preparado para viver fora daquele lugar.

— Tá se divertindo? — Ele apenas assentiu, não parando de sorrir por um minuto sequer. — Eu amo quando você tá feliz! — Por uma das primeiras vezes, me expressei de maneira significava com o mesmo, que para imediatamente para me dar um abraço.

— Não sei o que seria de mim sem você e o Rafa! — Ele parecia um pouco emotivo, já que aos poucos, afundou sem rosto em meu pescoço. Eu sinto que o mesmo nunca será capaz de superar a morte de Mikhael, principalmente por todas as circunstâncias. Não posso imaginar o quão vem sendo doloroso. É uma tarefa difícil me assegurar que ele estará seguro e dentro do nosso quarto todas as noites. Tenho medo dele tentar contra sua própria vida. Mesmo sendo uma responsabilidade que não poderia ter, faço questão de zelar pela pessoa que nunca se importou com o meu transtorno, e que ao invés disso, quis ser meu amigo e estar próximo.

— Eu prometo que Batista pagará pelo o que fez. O nosso plano vai dar certo! — Separo o abraço, afim de conforta-lo com um carinho em uma de suas bochechas. Mesmo sendo péssimo em demonstrar tantos sentimentos, sinto que com ele é diferente. — Nós três vamos viver juntos e sendo muito felizes. — Eu e Rafael conversamos bastante sobre incluir Tarik, aos poucos, em nossa relação. A um mês atrás, isso nem era um pensamento. Mas, conforme o tempo foi passando, as coisas foram mudando e ficando mais claras. É isso que queremos e com paciência, vamos respeitar o seu espaço. Sabemos que Pacagnan não tem uma vida fora do hospital, levando em consideração que sua família o colocou lá dentro, justamente para se livrar dele. E esse é mais um motivo para nos aproximarmos mais.

— Vocês são a minha família! — Não pude deixar de sorrir com a sua fala. Com as ondas ainda se chocando contra os nossos corpos e ainda tão próximo a ele, senti o impulso que precisava para fazer aquilo que desejava a algum tempo. Colei nossos lábios. Senti que fiz a coisa certa, quando sinto ele me acompanhando naquele beijo. Aos poucos, as coisas serão cada vez melhores. Sem uma ameaça em nossas vidas, as coisas são mais amenas.

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