Sentença.

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Felipe Batista


Dias monótonos continuaram desde então. Os policiais se mantiveram bastante otimistas e dando o devido espaço que havia pedido. Mesmo tendo o poder de recusar, decidiram aceitar, me dando um voto de confiança. Demorou um pouco para a minha sanidade retornar, mas foi apenas uma questão de tempo para todas as lembranças serem presentes em minha mente outra vez. Me assustei com tudo o que faltou contar. No fim, sinto que sou um verdadeiro louco e que devo passar o resto da minha vida atrás das grades mesmo. Sei que sem Tarik, jamais teria conseguido me relembrar de tantas coisas. Ao mesmo tempo, tudo parece tão vazio e sem sentido agora. A minha história não é tão emocionante quanto achava, afinal de contas. Como prometi a Pacagnan, assim que consegui uma pequena visão de um possível ajudante, pedi para que me levassem a sala de interrogatórios. De qualquer forma, espero que eles possam acreditar em minhas palavras e que esse seja o último interrogatório que eu irei participar. Foram tantos que acabei perdendo a conta. Dessa vez, nenhuma informação passará. O meu último desejo, é poder realizar a vontade da pessoa que senti algo tão genuíno depois de muito tempo. Sei que está longe dele sentir o mesmo, mas isso não importa no momento. Dissociar fará parte do meu contidiano, principalmente pelas novas coisas que fui capaz de me lembrar.

— Felipe Batista? — A voz me arranca dos pensamentos, e só então percebo que já estou na sala, diante do investigador. — Tem certeza de que está preparado? Você parece... distante. — Há uma suspeita fria no tom dele, mas eu não posso me dar ao luxo de hesitar agora.

— Estou pronto... — Murmuro, enquanto meus olhos se fixam no meu dedo anelar vazio, onde deveria estar uma aliança. As mãos tremem levemente, e por um instante, me pergunto se estou tentando convencer a mim mesmo. Levanto a cabeça, ajeito a postura e solto um suspiro profundo, me preparando para uma confissão que pode mudar tudo. — Já se passaram quatro anos desde aquele massacre no hospital. Perdi amigos, pacientes… Mas o mais doloroso foi perdê-lo... — a sensação de revelar algo tão íntimo me atinge como um golpe. Jamais imaginei que um dia teria que fazer isso. — João Victor... um dos médicos de lá... meu namorado. — Pela primeira vez, sinto as lágrimas escaparem em um interrogatório. Olhares surpresos se voltam para mim, mas prefiro me fixar num ponto qualquer da sala, decidido a continuar. — Nunca consegui aceitar sua morte. De alguma forma, ele permaneceu vivo na minha mente. Fiz com que fosse assim. Pra mim, João nunca esteve morto. — A mistura de emoções parece sufocar o ambiente, e eu me pergunto se todo o meu esforço terá algum valor. — Além do cargo de Mikhael, eu queria justiça. E meu namorado também queria. Sim, ele apoiou meu plano. Ele aceitou me ajudar! — A cada palavra, tudo parece mais claro na minha mente. — Então, sim. Vocês estão certos. Eu tive um ajudante! Ou melhor... tive alguém que acreditou, não só na própria vida, mas em algo maior. Acreditou em mim. Eu admiro aqueles que estão dispostos a aprender a construir um caminho ao lado de alguém, porque, em um piscar de olhos, você pode se ver corroído, questionando como é tão difícil se entregar, enquanto outros se deliciam, publicamente, com uma liberdade que parece inalcançável. — Meus pulsos estão selados há tanto tempo, enquanto meus ouvidos sempre foram preenchidos com ecos de liberdade. Agora, finalmente, consigo ver...

— Confessou. Ótimo. — Ele parece satisfeito com a confissão, pelo menos por enquanto. — Mas, a pedido do Tarik, precisamos relembrar algo. — Assinto, aguardando suas próximas palavras. — É estranho que seus planos tenham se concretizado justamente após ele ser internado no hospital e que os familiares quisessem se livrar dele nesse período. Por quê? — Ele exige uma resposta coerente.

— Da mesma forma, é estranho encontrar um fio de cabelo no seu almoço... Uma mera coincidência. Não conheço nenhum dos familiares dele. — O investigador ainda parece cético, mas a curiosidade brilha em seus olhos. — João Victor estava comigo. — Relembrar as verdades me emociona, e sinto meus olhos se encherem de lágrimas. — Com João Victor, eu fui capaz. Ouvia sua voz, como se fossem as preces de Deus. — Todas as palavras que ele um dia proferiu ecoam em minha mente, clareando os fatos. — Mas, se deixarmos de lado meus pensamentos fantasiosos... Ele só existe na minha cabeça fodida. O João Victor... Não existe. — Entre lágrimas, solto uma risada amarga, passando as mãos pelo rosto. — O ajudante que vocês acreditam que eu tenho não é real. Fui eu quem planejou tudo. Por quê? — Passo o pulso pelo nariz, tentando conter o fluxo da secreção nasal. — Para não me sentir tão sozinho. Vocês já flertaram com a solidão? Ela rouba sua vida, assim como homens que pensam que uma mulher só quer seu dinheiro. Mas... o que isso realmente custou? Peço desculpas a vocês presentes, mas estou sozinho. Solitário nesta sala. — Um silêncio pesado toma conta do ambiente, quebrado apenas pelo som rápido do teclado sendo digitado.

— Quero respeitar sua perspectiva, Batista, mas precisamos de uma confissão direta. Independente de quanto isso doa. — Suspiro pesado, relutando em fazer isso, mesmo sabendo que não há outra alternativa. — Prometo que este será o último interrogatório que você precisará enfrentar. Esta será a última confissão que você terá que fazer. — Preciso me preparar mentalmente, embora saiba que o tempo está se esgotando. É preciso fazer isso agora. — Por favor, Batista... Também estamos cansados disso.

— O ajudante que vocês tanto procuram estava apenas na minha cabeça. O João Victor morreu naquele massacre. Fui ao seu enterro, mas, inconformado, o revivi aqui. — Aponto para a minha cabeça. — A sensação de acolhimento era indiscutivelmente satisfatória. — Minhas palavras podem parecer insanas, mas eles permanecem curiosos. — Isso foi tão satisfatório que, em um certo momento, já não sabia mais quem era o João Victor. — Passei meses me lembrando dos planos de forma superficial; tudo parecia muito perdido e distante. — Mas agora, tudo foi esclarecido. Não há dúvidas sobre nada mais. — Finalizo a minha confissão, aliviado por agora, não ter mais nada a esconder.

— Agradecemos sua honestidade, Batista. — O olhar dele é indescritível, e eu não faço ideia do que me espera depois disso. — Sua pena será perpétua. Não há mais segredos ou malabarismos para te forçar a confessar outras verdades. Um tratamento psiquiátrico pode te ajudar. Mas, quem sabe, não existam coisas que você ainda não se lembra? — Apenas assinto, aceitando o peso da realidade.

É um choque perceber que nunca mais saberei o que é viver em sociedade. No fim das contas, mereci. Esta culpa será eterna. Cercado de fingimentos, mentiras... tudo o que resultou no meu aprisionamento. Desde o início, o João Victor jamais existiu. E quanto a mim... eu não sou mais o Batista. Eu sou... 

— Caso encerrado! — Exclamou o investigador.

Todos saem da sala, e não demora muito para um dos policiais vir me buscar. Gostaria que tudo fosse real e que o João Victor estivesse aqui comigo. Porque essa solidão me consome. Esse sentimento está me afogando.

... uma vida que não pertence a mais nenhuma outra. O culpado. Você, "Batista".

Falsas pistas (Mitw).Onde histórias criam vida. Descubra agora