Capítulo 55: Mundo Inferior.

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—Imagino, pelas histórias que escutou sobre nós. —Morgana me lançou um olhar cauteloso, como se isso ainda fosse uma coisa surpreendente pra eles. Não tinha dividido minhas descobertas sobre o livro do destino com Kaden. E tinha a sensação que não faria isso não cedo. —Que já tenha ouvido falar sobre o Mundo Inferior.

—É um portal entre mundos. Um lugar onde todas as dimensões se encontram. Um lugar sombrio e perigoso. —Falei, e ela concordou com a cabeça, torcendo os lábios ao ver que eu realmente conhecia. —Existe uma entrada pra lá em todos os mundos. No nosso, a entrega fica na cordilheira de Waryan, não é?

—É, exatamente isso. Nas montanhas além do deserto. —Morgana passou a mão pela saia do vestido, tirando do que parecia ser um bolso escondido, algo que ofereceu a Tempestade, que comeu de uma vez só. —Os humanos que você viu são de lá. Prisioneiros e condenados. Os compramos com muita frequência. Você roubou algumas informações de Varek sobre alguns carregamentos nossos que eles estavam interceptando. Esses carregamentos são os humanos trazidos do Mundo Inferior pro nosso clã.

—O que você quer dizer com prisioneiros e condenados? Kaden disse que são pessoas que fizeram... —Ela assentiu antes mesmo que eu terminasse de falar. Engoli em seco, pensando naquelas informações que tinha acabado de conseguir. —Desde quando vocês fazem isso?

—Desde sempre. Ou desde que a muralha surgiu. —Morgana deu de ombros, como se essas informações fossem irrelevantes. —Quando eu disse a você que estamos em guerra com Varek há muito tempo, eu não estava mentindo. Ele atrapalha nossos negócios, mata muitos de nós a séculos. Varek foi responsável pela morte do nosso antigo lorde.

—Seu pai? —Questionei, sentindo meu peito pesar quando Morgana confirmou com a cabeça. —E a sua mãe?

—Também. —Morgana encarou o chão, parecendo pensar longe. —Valerian deveria ter herdado a liderança assim que eles foram assassinados. Mas foi um baque tão grande pra nós três, que sabíamos que apoiaríamos uns aos outros até nisso. Então nós três tomamos a liderança. Três corações lutando nessa guerra. Três forças diferentes. Você me deu um presente e tanto quanto nos revelou onde a alcateia ficava. Eu estava esperando para destruir aquele lugar a muito tempo.

—O que aconteceu com aquele lugar? Vocês destruíram tudo? —Indaguei, e Morgana confirmou com a cabeça. Esperei pela sensação ruim. Pela culpa que tomaria conta de mim. Mas não consegui sentir absolutamente nada por aquele povo. —Todos vocês bebem sangue humano?

—Menos os que possuem parceiros oficiais. Velarian e Oren deixaram de beber sangue humano assim que se encontraram. —Morgana abriu um sorrisinho doce que fez um arrepio atravessar meu corpo. —Bebemos sangue de animais também. Equilíbrio, é o que pensamos quando o assunto é nossa alimentação. Mas não vamos deixar de beber sangue humano. Aquelas pessoas eram ruins, Avery. Acredite, o que damos a elas aqui é muito mais misericordioso do que eles poderiam encontrar lá fora.

Abaixei minha cabeça, soltando um suspiro pesado, antes de esfregar a mão na minha testa, porque minha cabeça tinha começado a doer. Era a sensação de receber tantas coisas ao mesmo tempo e não saber como lidar com elas. Queria ter ficado sabendo sobre aquilo desde o início. Não queria ter visto aquela cena e ser pega desprevenida.

—Por isso vocês deixam seus olhos vermelhos. Mostra aos outros clãs a tradição que vocês ainda seguem. —Afirmei, e Morgana não negou isso. O desconforto e a raiva tinham diminuído, mas eu ainda sentia algo queimando no meu peito.

—Não somos os únicos que fazemos isso, Avery. O Clã Kendrick é o mais próximo da muralha. Eles foram super afetados pelo tratado e pela muralha em si. —Morgana ajeitou os cabelos negros atrás da orelha delicadamente. —Eles caçam no Mundo Inferior agora. Qualquer humano que encontrarem sozinho e desavisado.

Um arrepio atravessou meu corpo, junto com algo quente deslizando pelo meu estômago. A ideia de que eles continuavam fazendo isso. Que alguns deles caçavam humanos e pegavam aqueles que provavelmente só percebiam o que estava acontecendo tarde demais, me deixava enjoada. Não queria pensar nisso. Não quando tinha inveja dos vampiros.

—A vida é cruel, Avery. A eternidade ainda mais. Você pode aceitar que vai viver por séculos, mas ainda vai precisar lidar com a morte andando do seu lado o tempo todo. —Morgana afirmou, ficando de pé com cuidado, enquanto eu absorvia o que tudo aquilo significava para o que eu desejava pra mim mesma. —Pode ficar aqui essa noite. Vou pedir para alguém avisar aos seus amigos que você está bem. Não queremos mais ninguém andando e vendo o que não deve, não é?

—Não, não queremos. —Concordei e Morgana sorriu de leve, antes de se retirar dos aposentos e me deixar sozinha.

Soltei um suspiro pesado, voltando a esfregar a testa, porque tinha tanto para pensar e tinha a sensação que não tinha muito tempo para chegar a uma conclusão. Não conseguia decidir o que achava deles bebendo sangue humano. Não era tão ruim quanto eu tinha imaginado no início, mas não significava que eu gostava daquilo.

Ajeitei a cama e me deitei depois de alguns minutos. Demorei muito pra dormir, porque minha mente parecia uma bagunça. Minha barriga roncou em algum momento, me lembrando que eu não tinha jantado. Mas a lembrança daqueles humanos tendo seu sangue tomado daquela forma também me deixava enjoada.

Alimentei a lareira quando ela quase apagou, voltando a me deitar, observando aqueles aposentos estranhos. Ainda estava acordada quando a porta do cômodo se abriu. Não o vi, mas sabia que era Kaden. Ele parecia não fazer mais questão de ser silencioso. Esperei para ver se ele deitaria na cama, porque não tinha certeza de qual seria a minha reação se ele fizesse isso.

Mas o silêncio prosseguiu e me dei conta de que ele tinha ocupado aquela mesma poltrona que Morgana se sentou quando estava conversando comigo. Me virei, conseguindo finalmente vê-lo sentado ali. Kaden abriu alguns botões da camisa, relaxando na poltrona como se estivesse cansado, o que eu duvidava muito que fosse possível.

Os olhos dele procuraram os meus. Aquele tom natural sendo mais bonito do que qualquer outra cor. Provavelmente os olhos mais bonitos que eu veria na minha vida toda. Ele permaneceu sentado lá e eu não tive coragem de me levantar. Ficamos olhando um para o outro, até o cansaço me fazer apagar com a lembrança dos olhos dele e de nada mais.


Continua...

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