Capítulo 54: Era tentador demais.

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Houve um momento em que eu não soube o que fazer. A forma como Kaden olhava pra mim, como se jamais fosse permitir que eu fosse embora. Ou o que aquelas palavras significavam. Sabia que havia muito sobre o meu mundo que eu não conhecia, mesmo por trás das histórias da mãe de Elowen. Mas eu estava cansada de tentar lidar com tudo aquilo de uma vez só.

—Eu nunca toquei em nenhum humano do seu reino. —Kaden insistiu, e eu engoli em seco muito lentamente, ainda com aquela faca apontada pra cima. —Se abaixar essa faca, posso explicar tudo a você. Ficar brava não vai ajudar em nada. Ameaçar ir embora não vai...

—Não era uma ameaça. —Retruquei, sentindo um gosto amargo na minha boca quando Kaden abriu um sorrisinho e tombou a cabeça de lado.

—Era sim, princesa. Da mesma forma que você sabe que eu nunca iria morder você contra a sua vontade, eu sei que você não teria coragem de ir embora. —Kaden deu um passo a frente, até a ponta da faca tocar sua garganta. Aquilo não parecia deixá-lo com medo. Óbvio que não, porque eu sabia que não conseguiria machucá-lo de verdade. —Você nos julga tão facilmente, quando seu povo comete crimes ruins e as vezes até mesmo piores.

—Se eu achasse que meu povo inteiro fosse inocente, eu não estaria aqui. —Retruquei, e sabia que tinha ganhado essa de Kaden quando ele assentiu e riu, confirmando que eu estava certa.

—Tem razão. Nenhum povo é totalmente inocente. Mas sabe qual a diferença pra nós? —Kaden questionou, e eu ergui o queixo, indicando que ele prosseguisse, porque não estava interessada em chutar qual era a resposta. —Vampiros matam, princesa. É impossível passar a eternidade sem ser obrigado a fazer isso em algum momento. Se quiser ser como eu, melhor aceitar que em algum momento até mesmo você vai precisar matar alguém.

—Saia daqui. —Falei, soltando uma respiração pesada quando senti que me odiava um pouquinho por desejar ser como eles, mesmo que agora eu quisesse não pensar nisso. Mas eu tinha crescido ouvindo histórias sobre eles. E eu tinha inveja de como eles eram livres e nunca precisavam se preocupar com a morte.

—Essa é a torre da Morgana. —Me lembrou, e eu percebi que preferia ficar perto dela do que de Kaden no momento. Só queria que ele desaparecesse para que eu pudesse pensar melhor. —Seu lugar não é aqui.

—Acho que eu não tenho lugar em qualquer ponto desse mundo. —Sussurrei, abaixando a faca e dando um passo para trás, antes de desviar os olhos dele. —Saia, ou vou cortar sua garganta com essa faca.

—Ah, eu acredito nisso, princesa. —Kaden sibilou, parecendo tão frustrado naquele momento, que eu vi na expressão dele o quanto ele desejava me morder naquele momento, apenas para provar que estava certo. —Pelo menos você já está familiarizada com a ideia de matar.

Quis gritar com ele por ser tão condescendente comigo, mas Kaden já havia desaparecido daquela sala, deixando a porta aberta para trás. Deixei a faca cair no chão, antes de me sentar contra a parede e esconder meu rosto entre os joelhos, porque nem mesmo conseguia respirar direito depois do que tinha acontecido. Do que eu tinha visto.

—Eu disse para ele contar a você. —Escutei a voz de Morgana, sem saber se ela esteve ali aquele tempo todo ou chegou agora que Kaden tinha partido. Escutei o som da faca no chão, quando Morgana a pegou e a colocou de volta no lugar. —Apesar de eu amar sangue, gostaria de pedir que não suje minha bela coleção com o sangue do meu irmão.

—Era tentador demais. —Falei, muito mais baixo do que pretendia. Morgana soltou uma risadinha sarcástica, como se tudo isso a agradasse muito.

—Eu imagino que sim. —Ergui a cabeça ao ouvir a resposta dela, observando-a tocar cada peça com cuidado, como se aquilo valesse demais. —Levante-se. Não gosto de drama e lágrimas. E se quer saber, isso não combina nada com você.

—Você nem me conhece direito. —Afirmei, mas fiquei de pé mesmo assim, passando a mão pelo rosto para afastar as poucas lágrimas que escorreram pelas minhas bochechas.

—Acredite, quando você tem décadas de vida, aprende a conhecer uma pessoa com poucos sinais. —Retrucou, se virando para me encarar. Os olhos vermelhos me avaliando no meio da escuridão, como se eu fosse algo quebrado que ela precisava lidar. —Não sou como Kaden que vai forçar você a escutar e a compreender a história. Se quer saber como funciona, vou explicar a você sem problemas. Mas se preferir tirar as próprias conclusões e fazer acusações, sugiro que vá mesmo embora, porque não precisamos de todo esse drama por aqui.

—Odeio o quanto você parece ser super prática. —Sussurrei, mordendo ao interior da bochecha quando Morgana riu, como se eu estivesse a elogiando. E era mesmo. —Tenho um pouco de inveja até.

—Você aprende com o tempo. —Ela deu de ombros, seguindo em direção a porta. Me perguntei se deveria segui-la ou não até Morgana parar na porta e me encarar, como se estivesse se questionando o que eu ainda fazia parada ali.

—Quantos anos vocês tem? —Questionei, indo atrás dela. Precisei praticamente correr, porque Morgana andava rápido e não se importava em me esperar ou olhar pra trás uma segunda vez para saber se eu estava indo.

—Eu tenho 136. —Afirmou, e eu engoli em seco muito lentamente, gravando aquela informação na minha cabeça. —Valerian tem 142 e Kaden 129.

—Por algum motivo, pensei que você fosse a mais velha. —Soltei, e Morgana me olhou por cima do ombro com um brilho faiscando nos olhos. —Mais de 100 anos de vida parece muito pra mim.

—Quanto você tem? —Morgana questionou, abrindo a porta de um cômodo e desaparecendo lá dentro. Entrei atrás dela, grata por ela fazer o favor de acender a lareira e depois algumas tochas. O aposento se iluminou, revelando um quarto parecido com aquele que eu ocupava na torre sul.

—Apenas 22. —Falei, e ela não demonstrou absolutamente nada ao me ouvir, se limitando a indicar que eu me sentasse na cama. Fiz isso, sobre os olhos avaliadores dela.

—Com 22 anos eu pensei que humanos já soubessem que não é adequado ficar enfiando o nariz aonde não se deve. —A alfinetada fez eu me encolher, porque sabia que ela estava certa. Se eu não tivesse descido aqueles degraus, não teria visto aquela cena. Eu provavelmente deveria ter apenas perguntado a Kaden sobre isso, depois de ouvir Varek. Mas estava com medo do que ia ouvir. Ainda estou, pra falar a verdade. —Quer ouvir ou quer ir embora?

—Quero ouvir. —Afirmei, e Morgana caminhou até a poltrona perto da lareira e se sentou. Tempestade entrou pela porta. As asas batendo até ele pousar sobre o ombro da vampira, onde permaneceu silencioso como sempre. Morgana começou a falar, e eu apenas ouvi.


Continua...

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