Capítulo 18 - Sangue

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Colocamos Jorge na imensa cama de casal com cobertores para lá de luxuosos. Existia uma elegante janela que Therina logo tratou de fechar e cobrir com as cortinas. Zeca foi acomodado em uma poltrona e me sentei na ponta da cama de casal, esperando Natália me dizer o estrago nas minhas costas.

– O corte foi um pouco profundo, mas eu posso amenizar isso.

– Faça o mínimo possível. Guarde todas as suas forças para tentar recuperar Jorge, acho que ele está precisando mais – retruquei.

Natália passou a fazer sua cura, movimentando as mãos suavemente sobre as minhas costas e na barriga, onde também existia um ferimento. Pude sentir as células se reagrupando e ganhando vida até o alívio surgir. Em seguida, ela parou e respirou fundo, fatigada. Samyra e Therina conversaram um pouco, uma explicando a outra o que havia acontecido nos últimos dias. Therina falou sobre todas as crueldades do reino e como sofria achando que aquilo tinha sido feito pela garotinha que ela criou com tanto amor.

– Foram momentos muito sombrios aqui no reino. Ainda bem que você voltou – Therina disse. – A falsa rainha agora está no aposento ao final do corredor, onde é possível ver a entrada do castelo e o comércio. Mas como vocês pretendem acabar com a feiticeira?

Nós nos entreolhamos. Desde que chegamos lá, tínhamos plano nenhum. A ideia era invadir e enfrentar tudo o que aparecesse. Descer na porrada mesmo. Depois do que passamos, contudo, comecei a imaginar que esse plano não daria certo, quando escutamos fortes batidas na porta.

– Therina, a rainha exige a presença da senhora no seu aposento real –  uma voz grossa comunicou. – Abra a porta! Ela parece estar furiosa. O que você fez?

A maçaneta girou várias vezes, entretanto a porta estava trancada. Eu peguei minha espada em defesa.

– Marcelo, Jorge não é capaz de andar ainda e eu preciso cuidar dele – Natália me falou, bastante aflita. – Zeca também não está em condições...

– Eu vou sozinho. – Todos olharam para mim na mesma hora. – Aquela bruxa não pode se safar dessa. Tudo começou por causa de mim e eu terei que acabar com isso. Samyra, você pode me dar cobertura? Faça qualquer tipo de ilusão e Natália poderia criar uma barreira, se necessário. Eu vou até aquela feiticeira.

A porta se abriu de solavanco. Vi Samyra segurar o colar de safira e se concentrar. O soldado fez uma cara de espanto e começou a golpear o ar, gritando sobre uma investida de morcegos gigantes. Eu o empurrei contra a parede e corri pelo corredor. Uma dupla de soldados protegia um aposento ao final da estreita passagem, o que me fez deduzir que aquele era o local de repouso da maligna. Eu girei a espada com afinco e derrubei o primeiro guarda. O segundo tentou me atingir, mas eu defendi e chutei a sua barriga. Ele bateu na parede; eu atingi a sua cabeça com meu punhal. A porta do aposento estava aberta e eu entrei.

O local era amplo, com uma cama que fazia jus ao glamour e exuberância dos grandes reis e rainhas. Havia um enorme guarda-roupa e uma mulher estava parada, fitando a janela. Ela usava um casaco preto e os cabelos eram lisos e escuros. Estava de costas para mim e pareceu não perceber minha entrada ou simplesmente não se importar. De repente, a mulher se virou; eu entrei em pânico. Os seus olhos encheram-se de lágrimas e ela correu até mim, com seus cabelos esvoaçantes. Eu vi sua pele clara, os olhos azuis, o sorriso familiar. A bruxa malvada me abraçou e eu deixei.

– Meu filho, que saudade eu estava de você! – ela disse chorando. – Não sabe o quanto eu esperei por esse momento.

– Mãe... – eu falei, confuso.

Meu coração estava batendo muito forte. Eu tentei raciocinar, entender como era possível uma pessoa tão malvada ser a minha mãe. Se aquilo era um truque, alguma ilusão dela, era bastante real. Eu sentia que não estava sendo enganado: a mulher na minha frente era a minha mãe, apesar de haver uma diferença entre aquela da minha memória. Eu me afastei e puxei a espada, mas a mulher não segurava nenhuma arma nem estava em posição de defesa. Mamãe queria apenas conversar.

– Venha, se sente aqui na cama. Faz muitos anos que a gente não se vê, quero acabar com a saudade. – Ela se sentou na cama e ficou me admirando. – Como você cresceu, meu filho! Como está maior, mais forte, um verdadeiro homem.

– Eu não acredito. Você não pode ser a minha mãe! Você é malvada, e cruel, e cegou o Zeca. Está fazendo todo esse reino sofrer. Como é possível?

– Estou fazendo tudo isso por você, querido. Você irá herdar todo esse lugar, será o dono do que quiser. É o verdadeiro herdeiro de todos os mundos, aceite isso.

Ela se levantou e foi até a janela, apontando para o conjunto de armações de madeira que formava o comércio local. As pessoas caminhavam apressadas, açoitadas pelos guardas reais. Eu vi o sofrimento de cada uma tentando ganhar o pão diário com tanto ardor. A mulher continuou falando:

– Está vendo todas essas pessoas? Elas estão trabalhando para nos enriquecer! Você também não vê isso no seu mundo? Do lugar aonde você veio não existem pessoas que passam o dia preocupadas, trabalhando sem cessar, para depois receberem suas recompensas? Eu só estou ensinando-as a terem disciplina. Esse reino era um caos antes de eu chegar.

– E Samyra? Ela era a verdadeira rainha daqui. Como pôde tirar o trono dela?

– Meu querido, quanta ingenuidade! Aquela garotinha tinha bom coração, mas era besta como um cavalo! Não ia conseguir administrar tudo isso. Já eu... Ah, eu sou a verdadeira rainha! Estou fazendo desse reino um mundo melhor, avançado, e depois partiremos para outro mundo!

– Não posso acreditar nisso! Você não vai para canto nenhum. Você pode ser minha mãe, pode ser o que quiser, mas eu não vou deixar isso acontecer – repliquei. Vi um anel prateado brilhar na mão da mulher e ela deu um gargalhada. – O que foi?

– Filho, você é que vai me ajudar a ir ao outro mundo. Não é estranho todos chamarem você do menino do portal? Pois bem, você é o menino do portal! – Ela se levantou e foi até mim. Eu continuava segurando minha espada e apontando para ela. A mulher, minha mãe, tocou na ponta da lâmina. – Pense no lugar que você mais queria estar agora. Pense do fundo do seu coração na sua casa, na sua Terra.

Eu não queria cair em seus truques, mas não resisti. Imaginei-me voltando para casa, encontrando meu pai e meu cachorro. Pensei em como seria bom voltar ao lar e estar em segurança. A espada de Éron começou a brilhar intensamente, com um verde forte e vivo. Um fluido esverdeado envolveu toda a lâmina. Eu apontei para a janela e vi um grande portal surgir perto das barracas de madeira. As pessoas começaram a gritar assustadas, correndo para longe daquilo. A bruxa deu uma gargalhada maléfica e só então entendi o meu verdadeiro poder. Eu era capaz de criar portais com a minha força de vontade. Eu era o menino do portal.

– Que coisa boa! Continue, continue! – A mulher batia palmas de euforia enquanto o portal ficava maior e maior. Ele cresceu, deveria ter uns 4 metros de diâmetro, e então uma força maligna me jogou contra a parede. Vi a verdadeira face da bruxa, agora raivosa e enrugada. Ela me encarou, apontando as unhas em meus braços e pernas. Correntes negras saíram da parede e prenderam os meus quatro membros. – Como é tolinho!

– Você... Você me enganou! – eu gritei. Pude sentir as lágrimas caírem dos meus olhos enquanto eu estava preso. A espada de Éron pendia no chão. – Você não é a minha mãe! Roubou a aparência dela também?

– Querido, eu sou Adiragram, a parte ruim da sua mãe. É a única coisa que você precisa saber. – A bruxa pegou a espada de Éron e a jogou pela janela. – Eu não vou te matar, porque um dia você servirá para mim! O meu sangue corre no seu e quando a raiva despertar no seu coração, formaremos uma bela dupla. Agora assista enquanto eu invado a sua querida Terra com meu exército sombrio. Obrigado por abrir o portal, meu filho!

A mulher foi até a janela e saltou, gritando ordens para os seus guardas reais enquanto voava no ar. Eu tentei me soltar das correntes negras, mas era inútil. Sem a espada, sem meus amigos, sem forças... A Terra vai ser invadida por uma bruxa maluca e tudo isso foi culpa minha. E da minha mãe.


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