Gedeão Spilett estava sentado na praia, imóvel, olhando o mar. O vento soprava forte e o aspecto do céu só confirmava o vendaval que certamente não tardaria. Pencroff foi ter com ele:
- Parece que vamos ter uma noite dos diabos, senhor Spilett.
- Estava aqui a pensar, Pencroff, que não deixa de ser muito estranho que os corpos de Cyrus Smith e do cão não tenham dado à costa..., caso tenham morrido, claro!
- Pode não ser... O mar estava bravo e, além disso, as correntes podem tê-los levado para longe - respondeu o marinheiro.
- Com todo o respeito pela sua experiência, Pencroff, acho que o desaparecimento de Cyrus e do Top, vivos ou mortos, não tem explicação - volveu o jornalista.
- Quem me dera pensar como o senhor, mas, infelizmente, estou convencido de que morreram afogados.
E com estas palavras, Pencroff voltou às Chaminés para preparar o jantar. Depenou dois tetrazes, enfiou-os num pau e pô-los a assar ao lume.
Pelas oito horas, Nab ainda não tinha voltado e os três companheiros jantaram em silêncio, presos da maior inquietação.
Que teria acontecido ao jovem negro? Talvez estivesse abrigado em qualquer sítio, esperando o amanhecer... Com efeito, lá fora na noite escura, a tempestade atingia proporções formidáveis.
Seriam umas duas horas da manhã, quando o marinheiro foi despertado por uma sacudidela vigorosa.
- Escute, Pencroff! Escute! - disse Gedeão Spilett.
- Mas o que é? Que aconteceu? Só ouço o vento! - respondeu o marinheiro.
- Não, não! Ia jurar que era o ladrar de um cão! - exclamou Spilett.
- Um cão? Não é possível! - Puseram-se os dois à escuta e numa acalmia do vento ouviram-se, de facto, latidos ao longe.
- É verdade, é verdade! - gritou Pencroff.
- É o Top! - gritou, por sua vez, Harbert, que também acordara.
Tentaram sair para o exterior das Chaminés, mas a ventania empurrava-os para trás com tanta força, que a única alternativa foi acenar da entrada com um archote aceso. Os latidos soavam cada vez mais perto. Subitamente, um cão precipitou-se para o interior do primeiro corredor do abrigo.
Era o cão do engenheiro Smith, mas infelizmente vinha só. Nem o dono nem Nab estavam com ele! Harbert abraçou-se ao cão, com a esperança renascida.
Havia, contudo, um detalhe que os intrigava: o animal não apresentava quaisquer sinais de fadiga, nem estava sujo de areia ou lodo...
- Se o cão apareceu, o dono também há-de aparecer! - disse o repórter.
- Vamos embora! O Top nos guiará! - exclamou Harbert.
Antes de saírem, Pencroff teve o cuidado de alimentar a lareira com mais lenha. A tempestade estava no auge e não se via um palmo diante do nariz. Seguiram, pois, em fila atrás do cão, confiando apenas no instinto do inteligente animal.
Quando o dia nasceu, pelas seis da manhã, encontravam-se a cerca de nove quilómetros das Chaminés, caminhando por uma praia plana orlada de muitos rochedos. Nessa altura, Top começou a dar mostras de agitação, correndo para trás e para diante, como que atraindo o marinheiro para o interior, na direcção de uma zona de dunas eriçadas de cardos. Apressaram-se a seguir o cão e, cinco minutos mais tarde, Top parou diante de uma espécie de gruta escavada na areia e desatou a ladrar. Spilett, Pencroff e Harbert entraram e o que viram deixou- -os estarrecidos. Nab estava de joelhos, inclinado sobre um corpo... o corpo do engenheiro Cyrus Smith! O pobre negro levantou-se pesadamente, desfigurado pelo cansaço e pela dor; para ele, o patrão estava morto.
Spilett ajoelhou-se rapidamente e encostou o ouvido ao peito do engenheiro.
- Está vivo! - gritou ele, após alguns segundos de atenta escuta.
Harbert saiu a correr, voltando pouco depois com o lenço encharcado de água de um regato ali próximo. O repórter humedeceu os lábios de Cyrus Smith, dizendo:
- Vamos salvá-lo!
Em seguida, despiram o corpo inanimado, friccionando-o com quanta força tinham. O engenheiro, reaquecido pela massagem, mexeu ligeiramente os braços, enquanto a respiração retomava um ritmo mais regular.
Com uma alma nova, Nab contou, então, o que lhe acontecera.
No dia anterior, por volta das cinco da tarde, descobrira pegadas na praia que continuavam na direcção das dunas; já seguia as pegadas por umas boas centenas de metros, quando Top lhe apareceu ao caminho e o conduziu até ao dono. Vendo o corpo inanimado, o negro julgara-o morto, mas, mesmo assim, resolvera mandar o cão chamar os companheiros, apontando para sul e repetindo o nome do Sr. Spilett, por ser mais familiar. Agora o que os espantava a todos era o facto de Cyrus Smith não estar ferido, nem sequer apresentar arranhões, o que seria o mais natural depois de ter sido arremessado pelas ondas a uma costa tão rochosa como aquela; e como é que viera parar a esta gruta perdida no meio das dunas, a mais de um quilómetro da praia? Mas as explicações podiam esperar. De momento, o mais urgente era salvar a vida do amigo e, para isso, precisavam de o transportar tão depressa quanto possível para as Chaminés, onde teria calor e alimento. Entretanto, Cyrus Smith abrira os olhos e dava sinal de reconhecer o seu fiel Nab e os amigos. Fazendo um enorme esforço, conseguiu balbuciar as seguintes palavras:
- Ilha ou continente?
- Ora, senhor Smith, o que importa é que esteja vivo! Ilha ou continente? Isso logo se vê! - exclamou o marinheiro.
O engenheiro parecia recuperar da prostração em que o haviam encontrado e Spilett, vendo-o melhor, fez o relato do que lhes acontecera desde a queda do balão à descoberta das Chaminés, sem omitir as buscas e a dedicação de Nab, assim como o papel determinante do cão, que os fora chamar.
- Quer dizer, então, que não me encontraram caído na praia?- perguntou Cyrus Smith, ainda com a voz enfraquecida.
- Não, Cyrus, você já estava aqui nesta gruta - respondeu o repórter.
- E este lugar a que distância fica dos recifes? - perguntou Smith.
- A um quilómetro, mais ou menos - informou Pencroff.
- E se o senhor está espantado, olhe que nós não ficámos menos por tê-lo encontrado tão longe da praia!
- Sim, sim, é muito estranho... - murmurou o engenheiro.
- E agora se nos contasse também o que lhe aconteceu? - retomou o marinheiro.
Mas Cyrus Smith de pouco se lembrava. Mal caíra ao mar, apercebera-se da presença do cão junto dele; a costa estava a uns oitocentos metros e começara a nadar com quanta força tinha, lutando contra as vagas, quando, de repente, uma corrente fortíssima os arrastou para norte. Depois de uma meia hora de esforços sobre-humanos, com Top a agarrá-lo pelas roupas, sentira-se perder as forças e desfalecer... A seguir, não conseguia recordar-se de mais nada!
- Mas, pelos vistos, veio dar à costa e foi capaz de chegar a esta gruta! - exclamou o marinheiro. - Nab viu as suas pegadas na areia!
- Sim... pode ser... disse o engenheiro, hesitante. - E vocês viram algum sinal de presença humana por estas paragens?
- Nem um traço! - respondeu Spilett. - De resto, se alguém o tivesse salvo e trazido até aqui, por que é que depois o havia de abandonar?
- Sim, você tem razão, meu caro Spilett. Ouve cá, Nab, as tais pegadas ainda lá estão?
- Sim, patrão, ainda há algumas no outro lado da duna, num sítio abrigado do vento. As outras, o temporal apagou-as.
- Pencroff, faça-me um favor! - pediu Cyrus Smith. - Leve os meus sapatos e veja se as pegadas coincidem.
Instantes depois, o marinheiro estava de volta. Não havia qualquer dúvida! Os sapatos do engenheiro correspondiam exactamente às pegadas marcadas na areia!
- Ah! Então devo ter caminhado como um sonâmbulo, sem qualquer consciência do que fazia... Foi o Top que me arrancou à fúria das ondas e que, com o seu instinto, me guiou até aqui! Anda cá, meu bravo cão!
Chegara o momento de transportar Cyrus Smith para as Chaminés. Estenderam o amigo, que mal se tinha de pé, numa padiola improvisada com troncos e ramos e puseram-se a caminho. Pelas cinco e meia da tarde, chegaram diante do abrigo. O engenheiro adormecera profundamente, e nem acordou quando Pencroff e Nab pousaram a padiola no chão.
A cena com que depararam era inquietante! O temporal da véspera modificara por completo o aspecto do local. O mar tinha subido muito e a força das ondas arrastara a areia, deixando muitos rochedos a descoberto e a praia juncada de algas e limos... Temendo o pior, Pencroff precipitou-se para o interior das Chaminés. Os seus receios confirmavam-se! A maré entrara pelos corredores destruindo tudo e, pior ainda, apagando o fogo!

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A Ilha Misteriosa
De TodoSinopse: A história começa nos Estados Unidos da América, durante a guerra civil, durante o cerco de Richmond, Virginia, a capital dos Estados Confederados da América (Sul). Cinco americanos do norte, prisioneiros, decidem fugir utilizando um meio p...