Capítulo VII

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Às sete horas da manhã, após quatro dias de aflição, o Boaventura lançava ferro junto à foz do Mercy. Imagine-se a alegria de Cyrus Smith e de Nab, que já estavam preocupadíssimos com a demora dos amigos...
- E o náufrago? Trouxeram-no? Quem é ele? - As perguntas sucediam-se em catadupa.
- É um homem... ou melhor, era um homem. Bem, nem sei como explicar! - disse Gedeão Spilett.
À vista do náufrago, Cyrus não conseguiu disfarçar a pena que sentia. Nab, então, ficou boquiaberto de espanto. O desgraçado, mal pôs um pé em terra, esboçou um gesto de fuga, mas o engenheiro, pondo-lhe a mão no ombro, fitou-o com olhar tão firme e bondoso, que o homem baixou os olhos e inclinou a fronte numa submissão imediata.
- Pobre abandonado - murmurou Smith.
O desconhecido - como, a partir de então, os colonos passaram a chamá-lo - foi levado para um dos quartos da Casa de Granito, de onde, aliás, não tinha possibilidade de se escapar. Durante a refeição, que Nab se apressara a preparar, o engenheiro foi posto ao corrente de todas as peripécias ocorridas na ilha Tabor e a conversa centrou-se, naturalmente, no estranho hóspede da Casa de Granito.
- Senhor Cyrus - perguntou Harbert, a dado momento -, será que ele perdeu de todo a razão? Não poderá recuperar?
- Tenho a certeza que sim - respondeu Smith. - Repara que ainda há alguns meses ele era um homem como nós.
Portanto, é de crer que o embrutecimento a que a solidão o conduziu, embora profundo, é recente e a sua consciência de homem, de ser inteligente, há-de voltar ao de cima.
- Mas porque é que diz que esta acentuada degradação data apenas de alguns meses? - insistiu o rapaz.
- Ora, Harbert, porque a mensagem que nos chegou não pode ter sido, escrita há muito mais tempo! - explicou Cyrus Smith.
- E só o náufrago a podia ter escrito.
- É assim mesmo! - atalhou Pencroff. - Já conheço o suficiente destas correntes e marés, para saber que a garrafa nunca poderia andar a boiar por aí durante muito tempo. Mesmo que não se partisse de encontro às rochas, a humidade do mar estragava o papel...
Harbert recordou, então, a espécie de "ressurreição" passageira no espírito do prisioneiro, quando, em plena tempestade, resolveu o problema da inundação do convés.
- Aí está! - opinou Cyrus Smith. - Mais uma razão para acreditarmos que esse desgraçado não é incurável. Foi o desespero que o pôs neste estado, mas na nossa companhia vai ficar bom.
- O senhor Cyrus disse, está dito! - rematou Pencroff. Agora é tempo de voltarmos ao trabalho. Para já, toca a descarregar o Boaventura. Depois, com sua licença, senhor Cyrus, vou levar o barco para o porto do Balão onde ficará bem abrigado, melhor do que na foz do rio. O Harbert vem comigo.
Nos dias seguintes, o desconhecido, habituado à liberdade sem limites da sua vida selvagem, evidenciou alguns acessos de furor surdo, a ponto de os colonos temerem que se atirasse da janela. No entanto, foi acalmando aos poucos, graças, sobretudo, à influência que o engenheiro Smith sobre ele exercia, com a sua atitude firme e paternal. Outro sintoma animador foi o abandono da horrível preferência por carne crua; por outro lado, deixou que Nab lhe cortasse o cabelo e a barba e lhe aparasse as unhas. Recuperara, assim, o aspecto humano e até parecia que o olhar se adoçara, embora marcado por uma tristeza sem fim... O engenheiro tinha o cuidado de passar várias horas por dia junto dele. Punha-se a trabalhar em diversas coisas, tentando fixar-lhe a atenção, sempre atento a uma reacção ou gesto que revelasse o despertar daquele cérebro entorpecido.
Outra coisa que ele fazia era falar em voz alta, mas, embora às vezes lhe vislumbrasse alguma atenção, nunca lhe conseguia arrancar uma palavra. Os outros colonos acarinhavam os esforços do engenheiro e com ele partilhavam a esperança e a fé.
Certo dia, Cyrus Smith resolveu tentar uma nova experiência.
Foi buscar o desconhecido que, como de costume, estava acocorado perto da janela a olhar o céu.
- Venha, meu amigo! - disse-lhe.
O pobre levantou-se imediatamente e seguiu o engenheiro até à beira-mar. Deu alguns passos pela espuma das ondas e os olhos brilharam-lhe com uma animação que os colonos ainda não lhe tinham visto. Em seguida, e sem esboçar qualquer movimento de fuga, acompanhou Cyrus Smith à embocadura do Mercy e ao planalto. Uma vez lá chegados, o desconhecido estacou, encheu o peito de ar e aspirou inebriado os cheiros doces da floresta próxima... Grossas lágrimas escorreram-lhe, então, pelas faces torturadas.
Cyrus, olhando-o de frente, com as mãos pousadas nos seus ombros, disse emocionado:
- Meu amigo, se é capaz de chorar, é porque é novamente um homem! O certo é que, desde esse dia, o desconhecido começou a dar mostras de querer partilhar das tarefas da pequena colónia.
Passava a maior parte do tempo no planalto, a trabalhar nas culturas sem um instante de repouso. Os outros, por recomendação do engenheiro, abstinham-se de o incomodar e deixavam-no à vontade. Era agora evidente para todos que o homem ouvia e compreendia tudo perfeitamente, mantendo apenas a obstinação de não falar.
Alguns dias mais tarde, seria já Novembro, estava ele a cavar no planalto, deixou cair a enxada; Cyrus, que estava ali perto, viu que lhe corriam de novo lágrimas pela cara abaixo...
Aproximou-se e tocou-lhe levemente num braço.
O desconhecido estremeceu e pretendeu recuar.
- Meu amigo! - disse o engenheiro com autoridade. - Olhe para mim! Quero que olhe para mim! O infeliz levantou os olhos e a expressão transformou-se-lhe. Já não podia conter-se mais! Com uma voz muito funda e rouca, finalmente falou:
- Quem são os senhores? - perguntou ele.
- Náufragos também. Somos seus iguais... Aqui, está entre amigos! - respondeu Cyrus Smith.
- Amigos! Eu? - O desconhecido tapava a cara com as mãos. - Eu não tenho amigos, não posso ter!
E afastou-se a correr. O engenheiro foi logo dar notícia destes progressos, observando Gedeão Spilett:
- Há um mistério qualquer na vida deste homem! E estou convencido de que só pela via do remorso voltará à sua condição humana.
- Deve ter um segredo terrível no passado, é o que é - comentou Pencroff.
- Que nós respeitaremos! - disse Smith, com firmeza. - Se cometeu algum crime, já o expiou... e cruelmente. Aos nossos olhos, está absolvido.
Passaram algumas semanas sobre este acontecimento, durante as quais o homem não voltou a pronunciar palavra. Um dia, aproximou-se de Harbert e perguntou ansiosamente:
- Que mês? Que ano?
- Novembro de 1866 - esclareceu Harbert.
- Onze anos! Onze anos! - gritou o desconhecido, antes de desatar a correr.
Cyrus Smith meditou na informação do rapaz e concluiu:
- Onze anos de isolamento! Ah!, como não há-de ter a razão alterada, este infeliz!
- Sou levado a crer que o homem não naufragou na ilha Tabor... - observou Pencroff. - O que deve ter acontecido é que ele foi lá abandonado na sequência de algum crime.
De qualquer modo, a revelação do tempo de degredo na ilha Tabor recolocou uma questão que, aliás, nunca ficara de todo resolvida: a da data do lançamento da mensagem ao mar.
De fato, custava muito a crer que, após onze anos de absoluta solidão, só há coisa de poucos meses o homem tivesse atingido o estado de selvajaria em que o haviam encontrado... Era óbvio que o desgraçado estava assim há muito mais tempo, assim como também era óbvio, pelo estado do papel e pelo brilho da tinta, que a mensagem era recente... Então, quem poderia ter escrito a mensagem?
- Ora aqui temos nós um verdadeiro mistério! - disse o engenheiro, com uma serenidade que contrastava com a perturbação dos companheiros. - Mas na vida tudo tem uma explicação lógica... Em tempo devido o saberemos.
Spilett percebeu que o amigo já tinha qualquer ideia sobre o assunto, mas evitou fazer comentários. Cyrus prosseguiu:
- Agora temos muito mais com que nos ocuparmos. E peço-lhes que não insistam com o nosso novo companheiro para ele falar... Quando ele quiser, nós cá estamos para o ouvir.
Nos dias que se seguiram, o desconhecido não voltou a pronunciar palavra e manteve-se afastado, entregue ao seu trabalho na horta do planalto. De resto, era ali que comia e dormia, apesar de os colonos insistirem para que ficasse na Casa de Granito.
Estes quase que esqueciam a existência da misteriosa criatura, porque coisas para fazer é que não faltavam. A colheita de trigo era uma delas! Com efeito a "seara" de Pencroff aquele primeiro grão lançado à terra, conforme os leitores estarão lembrados - germinara e multiplicara-se, produzindo quatro mil alqueires logo na segunda colheita! Agora, dezoito meses depois, a seara de trigo ocupava um talhão considerável do planalto e a colónia podia considerar satisfeitas as suas necessidades de cereal para o fabrico de pão.
A última quinzena de Novembro foi inteiramente dedicada à moagem do trigo, para se obter farinha.
Para tanto, impunha-se a construção de um moinho e, entre um hidráulico e um de vento, os colonos optaram por este último por ser o mais fácil. Na verdade, os ventos do planalto dariam uma força motriz inesgotável. As mós foram arranjadas com a excelente pedra de grés que abundava na parte norte do lago, enquanto as velas saíram do tecido do balão que, pelos vistos, dava para tudo! Faltava agora erguer o moinho propriamente dito, e a essa tarefa se dedicaram de corpo e alma o marinheiro e o jovem negro, tornados carpinteiros de primeiríssima classe.
Foi assim que, no primeiro dia do mês de Dezembro, Pencroff, remirando-se na obra, só pedia uma coisa:
- Vá, agora que venha vento e do bom, para que se veja como é que se mói trigo!
- Bom vento, está bem, Pencroff, mas que não seja de mais... - dizia o engenheiro, a sorrir.
Os elementos ouviram as preces do marinheiro e mandaram um vento tão favorável que, em pouco tempo, o trigo armazenado estava todo moído. Procedeu-se, então, ao amassar da farinha e à cozedura do pão que, pela primeira vez, acompanhou a refeição dos colonos, deliciados com mais este "requinte" fruto do trabalho colectivo.
Certo dia desse mês de Dezembro, Harbert foi pescar para o lago. Ia desarmado, porque para aquelas bandas nunca se tinha visto um único animal perigoso. Pencroff e Nab estavam ocupados na capoeira, enquanto, nas Chaminés, Cyrus e o repórter produziam soda, pois a provisão de sabão estava no fim. Subitamente, ouviram-se gritos de aflição...
- Socorro! Acudam-me!
Era Harbert quem assim gritava. Precipitaram-se todos em louca correria, mas quem chegou primeiro ao lago foi o desconhecido. Harbert tinha pela frente um formidável jaguar já a preparar o salto! Rápido como um raio, apenas armado de uma faca de mato, o desconhecido saltou sobre a fera.
A luta foi breve. Segurando o jaguar pela garganta com a mão esquerda, poderosa como uma garra, desferiu com a direita um golpe mortal no coração do felino, que caiu morto. Quando os colonos chegaram, esbaforidos e assustados, o homem fez menção de fugir, mas Harbert segurou-o.
- Meu amigo - pronunciou Cyrus Smith, com a voz embargada -, acabamos de contrair uma dívida de gratidão para consigo! Salvou o nosso rapaz, arriscando a sua própria vida.
- A minha vida... - murmurou o desconhecido. - A minha vida não vale nada!
Harbert pretendeu apertar a mão do seu salvador, mas este evitou o gesto cruzando os braços sobre o peito poderoso.
Depois, perguntou bruscamente:
- Quem são vocês? O que estão aqui a fazer nesta ilha? O que é que pretendem ser para mim?
Era a história dos colonos que, pela primeira vez, ele queria conhecer... Quem sabe se a seguir não contaria a sua? Cyrus Smith narrou-lhe toda a odisseia vivida desde a fuga de Richmond; o homem escutava atentamente. Por fim, o engenheiro rematou:
- Agora que nos conhece, continua a recusar-se a apertar a nossa mão?
- Vocês são homens bons, são gente honesta - respondeu.
- Eu não posso tocar numa mão honrada, eu não posso, porque eu...
O desconhecido passou a mão pelos olhos molhados de lágrimas; todo ele tremia. Por fim, voltou a falar:
- Senhor Cyrus, apesar de não ser merecedor, queria pedir-lhe um favor! Os animais do curral precisam de ser tratados todos os dias... Deixe-me ir viver para lá.
O engenheiro fitou o infeliz com profunda comiseração:
- No curral só há estábulos. Não há condições para uma pessoa viver...
- Chega para mim.
- Está bem! - condescendeu Cyrus Smith. - Mas nós arranjaremos as coisas para que fique devidamente instalado.
Nesse mesmo dia, os colonos dirigiram-se ao curral, munidos de tudo o que era preciso, e, ainda a semana não se escoara, já uma cabana estava pronta e mobilada com o mínimo necessário. O desconhecido não os acompanhava. Preferira compensá-los do esforço que por ele faziam, empenhando-se ainda mais nos trabalhos agrícolas, de modo que, quando as obras no curral acabaram, as terras do planalto estavam prontas para as sementeiras! Estava-se a 20 de Dezembro. Nessa noite - a primeira que o desconhecido passaria no curral - os colonos conversavam na sala grande, quando bateram levemente na porta. O desconhecido entrou, pálido e emocionado.
- Senhores, antes que me vá embora, quero que ouçam a minha história... É assim: "Num dia de Dezembro de 1854, um iate a vapor pertencente a um fidalgo escocês fundeou na costa oriental da Austrália, perto do cabo Howe, a quase 37 graus de latitude sul. O iate tinha a bordo, além do proprietário, Lorde Glenarvan, a mulher deste, um major do exército inglês, um geógrafo francês, um rapaz e uma rapariga. Os dois jovens eram os filhos do capitão Grant, cujo navio - o Britannia - se afundara há um ano atrás junto do litoral australiano, segundo constava.
"A tripulação do Duncan - era este o nome do iate - era composta pelo comandante, capitão John Mangles, e uma equipagem de quinze homens. O que fazia um barco de recreio europeu naquelas paragens remotas? Pois bem: acontece que, seis meses antes, o pessoal do Duncan tinha recolhido no mar da Irlanda uma garrafa com uma mensagem escrita em inglês, francês e alemão, na qual se dava conhecimento da existência de três sobreviventes do naufrágio do Britannia, sendo um deles o próprio capitão Grant! Os sobreviventes, segundo a mensagem, estavam numa terra, cujo nome não era indicado, situada a 37 graus 11 minutos de latitude sul, mas cuja longitude, infelizmente, fora apagada pela água do mar.
"Como a Marinha inglesa hesitasse em empreender uma busca tão incerta, Lorde Glenarvan pôs-se em contacto com Mary e Robert Grant, filhos do capitão desaparecido, e resolveu chamar a si a missão de o encontrar. Aparelhado e equipado para longo curso, o Duncan levantou ferro do porto de Glasgow e rumou ao Atlântico Sul. Aí, a navegação prosseguiu contornando a América do Sul e, passado o estreito de Magalhães, entraram no oceano Pacífico. Convicto de que os sobreviventes estariam por paragens australianas, Lorde Glenarvan fez seguir o iate até à Austrália, onde chegou, como já se disse, em finais de Dezembro de 1854.
"A intenção de Lorde Glenarvan era explorar a região meridional do continente, a província de Vitória, por ser esta a que mais se aproximava da latitude indicada na mensagem.
"Desembarcaram os passageiros e fizeram diligências no sentido de obter quaisquer informações sobre o naufrágio e possíveis sobreviventes. Entretanto, tinham-se hospedado numa fazenda de colonos irlandeses, cujo proprietário nada sabia a respeito do Britannia. Sucedeu, então, que um dos trabalhadores recentemente contratados pelo irlandês, se apresentou diante de Glenarvan com grandes manifestações de júbilo por saber que o capitão Grant estava vivo, já que ele, também um sobrevivente do Britannia, onde servia como contramestre, julgava todos os companheiros mortos. E terminou, dizendo que, se o capitão Grant estava vivo, só poderia estar prisioneiro dos aborígenes. Aquele homem, de nome Ayrton, falava com franqueza na voz e firmeza no olhar, para além de ter em seu poder papéis que confirmavam ter sido contramestre do navio naufragado, pelo que Lorde Glenarvan não viu motivos para duvidar das suas palavras e logo deu início aos preparativos da expedição ao interior do território.
Nas buscas, tomariam parte todos os passageiros do Duncan, mais o capitão Mangles e alguns marinheiros. Ayrton foi admitido no grupo como guia da expedição, enquanto o imediato Tom Austin recebia a incumbência de conduzir o Duncan até à cidade portuária de Melbourne, onde ficaria a aguardar ordens. No dia 23 de Dezembro, o grupo pôs-se a caminho.
"Cabe agora revelar que Ayrton era um homem sem escrúpulos, um traidor! Tinha sido, de facto, contramestre do Britannia, mas na sequência de uma tentativa de revolta a bordo, por ele empreendida com a finalidade de tomar conta do navio, o capitão Grant desembarcara-o, a 8 de Abril de 1852, nas costas da Austrália. A partir desse dia, Ayrton nada mais soubera do seu antigo navio, muito menos que tinha naufragado! O miserável passara, então, a usar o nome de Ben Joyce e tornara-se o chefe de um bando de criminosos evadidos. Fugido a um ajuste de contas, resolvera refugiar-se por uns tempos naquela fazenda dos irlandeses, sendo graças a este acaso que ouviu o relato do fidalgo escocês. Ayrton arquitectou imediatamente um plano criminoso para se apoderar do Duncan, visto que o seu maior desejo era voltar ao mar e dedicar-se à pirataria.
"Assim, conduziria Glenarvan e os companheiros para uma região suficientemente inóspita e desprovida de recursos e ele, na primeira oportunidade, fugiria para Melbourne onde, com a ajuda dos cúmplices oportunamente avisados, trataria de tomar de assalto o iate. Se bem planeou, melhor o fez! Chegados ao porto, os bandidos, depois de ludibriar sem dificuldade de maior o imediato Austin e de expulsar de bordo a reduzida tripulação, ganharam o alto mar. Em fins de Fevereiro, andava o Duncan nas suas actividades criminosas ao largo da costa leste da Nova Zelândia, quando foi abordado por um brigue tão bem equipado e armado, que o bando, pouco numeroso e não dispondo de canhões a bordo, não teve outra saída que não render-se.
"Imagine-se o espanto de Ben Joyce, aliás, Ayrton, quando se viu diante de Lorde Glenarvan! "Eis o que sucedera: Glenarvan, a mulher e os amigos, depois de trabalhos e perigos sem conta, tinham conseguido chegar a Melbourne, onde o desesperado Tom Austin os pôs ao corrente da traição de Ayrton e da captura do iate pela força.
"Homem de grande fortuna e não menor coragem, o lorde escocês não se deu por vencido. Imediatamente, fretou um navio mercante bem armado e tripulado por gente destemida, e foi no encalço do Duncan, acabando por recuperá-lo como se viu.
"Os cúmplices de Ayrton, todos eles cadastrados evadidos, foram imediatamente entregues às autoridades inglesas e recambiados para a ilha Norfolk, a colónia penal mais severa da época. Ayrton só escapou a igual sorte, porque, à última hora, conseguiu negociar um acordo com Lorde Glenarvan: em troca das informações sobre o naufrágio do Britannia, seria desembarcado numa das ilhas do Pacífico. Recomeçaram, então, as buscas ao longo do paralelo 37", desta feita em pleno oceano. Ora sucedeu que Ayrton, tomado talvez por alguma sombra de arrependimento, acabou por revelar o seu passado, confessando nada saber a respeito do Britannia, desde o dia em que o capitão Grant o expulsara do navio, abandonando-o na costa australiana.
"Apesar desta confissão, Lorde Glenarvan manteve a palavra dada de não entregar Ayrton às autoridades inglesas, e o Duncan prosseguiu a busca mantendo a rota no paralelo 37". Foi assim que chegaram à ilha Tabor, a terra referenciada na mensagem dos náufragos! Estes foram recolhidos a bordo, enquanto o traidor recebia ordem de desembarque. Aquela seria a ilha do desterro. Antes, porém, Ayrton foi chamado à presença de Lorde Glenarvan, que lhe disse o seguinte: "- Você fica aqui neste ilhéu, onde a partir de agora viverá longe dos seus semelhantes, apenas observado por Deus e pela sua consciência! Todavia, ao contrário do capitão Grant e dos companheiros, não fica ignorado ou perdido... Por mais indigno que seja da lembrança dos homens, alguns lembrar-se-ão de si. Eu sei onde você está, Ayrton, e saberei onde o encontrar... um dia! Nunca me esquecerei disso! "Dito isto, o Duncan levantou ferro e em breve desaparecia no horizonte. Era o dia 8 de Março de 1855. Ayrton estava só e isolado do mundo, mas não lhe faltavam armas, munições e sementes. Tinha, igualmente, a cabana do capitão Grant à sua disposição... Nada mais lhe restava senão sobreviver e expiar os crimes cometidos. Mas, a pouco e pouco, o abandonado foi caindo no embrutecimento total, acabando por se transformar num verdadeiro selvagem... aquele mesmo que os colonos da ilha Lincoln recolheram!" - E o abandonado terminou:
- Escusado será dizer-vos, senhores, que Ayrton ou Ben Joyce e eu somos uma única e a mesma pessoa! Cyrus Smith e os companheiros tinham-se posto de pé. É difícil descrever a emoção que sentiam, tanta era a miséria, o desespero e a dor que lhes fora dado conhecer... O engenheiro encaminhou-se para o ex-celerado.
- Ayrton - disse -, o seu passado criminoso já foi, certamente, expiado aos olhos de Deus. A prova é que Ele o trouxe até aqui. Por nós, também está perdoado. Quer ser agora um dos nossos? Ayrton recuou um passo, tomado de perturbação. Cyrus retomou a palavra:
- Aqui tem a minha mão!
O homem precipitou-se para estreitar aquela mão estendida.
Um a um, os outros aproximaram-se e abraçaram o novo amigo e companheiro.
- Não prefere ficar a viver connosco? - perguntou ainda Cyrus Smith.
- Senhor Smith, peço-lhe que me deixe ficar no curral por algum tempo...
- Como queira.
Ayrton fez menção de se retirar, mas o engenheiro Smith reteve-o com um gesto:
- Ah!, diga-me uma coisa, meu amigo: se preferia ficar isolado, por que razão atirou ao mar a mensagem que nos fez ir buscá-lo?
- A mensagem? - espantou-se Ayrton.
- Sim, a mensagem dentro da garrafa com a localização exacta da ilha Tabor...
- Nunca deitei nenhuma mensagem ao mar, senhor Smith! - respondeu Ayrton.
E, inclinando levemente a cabeça, saiu da sala.

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