Capítulo XI

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Os grandes frios continuavam, mas nem por isso Spilett, Pencroff e Harbert deixavam de sair, para caçar nas imediações da Casa de Granito. De repente, tinha-lhes ocorrido montar armadilhas no planalto e na orla da floresta, e iam diariamente verificar se algum animal caíra nas covas tapadas com troncos e ramagens. Por este processo, apanharam não só umas quantas raposas, impróprias para comer, como também, e para grande contentamento do marinheiro, vários porcos-do-mato ou, mais concretamente, pecaris.
Subitamente, a 15 de Agosto, o tempo mudou. Primeiro, levantou-se uma forte ventania de noroeste e, logo a seguir, começou a nevar sem parar! Ao fim de uns dias, toda a ilha ficou coberta de um manto branco com cerca de sessenta centímetros de altura.
De 20 a 25 de Agosto, a tempestade recrudesceu de tal modo, que ninguém conseguiu pôr um pé fora da Casa de Granito. Lá no alto, ouvindo os rugidos do mar e as ondas a embater nos recifes, os nossos colonos não se cansavam de dar graças por aquele abrigo, tão seguro como inexpugnável! Ali, encontravam-se a salvo de todos os temporais, por mais violentos que fossem. Esses dias de reclusão forçada, aproveitaram-nos os colonos na construção de mais peças de mobiliário, porque reservas de madeira é que não faltavam.
Finalmente, na última semana de Agosto, as condições atmosféricas melhoraram e os nossos amigos apressaram-se a descer à praia; daí, subiram ao planalto e depararam com a vista impressionante da ilha completamente branca. A neve não tardaria, contudo, a derreter, porque, pouco depois, a temperatura subiu e começou a chover. Os colonos aproveitaram a melhoria do tempo para renovar não apenas as provisões de alimentos, como pinhões e raízes de dragoeiro, coelhos bravos e cutias, mas também as de lenha e carvão.
E andaram bem a tratar das reservas, porque, de repente, o vento virou a sueste e o frio tornou-se penetrantíssimo! A neve voltou e, se acaso tivessem um termómetro, pelos cálculos do engenheiro ele marcaria seguramente uns vinte graus negativos.
Em semelhantes condições, a pequena colónia não teve alternativa senão ficar novamente enclausurada na Casa de Granito. Ia o mês de Setembro a meio e já todos começavam a ressentir-se da situação, se bem que procurassem manter-se sempre ocupados com pequenos trabalhos de arranjo dos interiores e outras tarefas úteis. Por outro lado, passavam longas horas em torno das chamas da lareira, ouvindo atentamente o engenheiro que não perdia uma oportunidade para instruir os companheiros acerca dos mais variados assuntos.
Mas convém referir que, depois de Pencroff, quem mais sofria com o encerramento forçado era o cão. Top dava sinais do seu aborrecimento, andando agitadamente de um lado para o outro, a vasculhar todos os recantos. Com o passar dos dias, Cyrus Smith, embora sem estar especialmente atento ao comportamento do animal, acabou por reparar que Top começava a rosnar, sempre que entrava na arrecadação e se aproximava da boca do poço que ia dar ao mar; por vezes, punha-se a andar à volta do buraco, agora tapado, tentando mesmo retirar a tampa de madeira com as patas. Este singular comportamento não podia deixar de intrigar o engenheiro Smith. Que haveria naquele abismo para impressionar a tal ponto o cão? As hipóteses podiam ser várias, contudo, certezas não havia nenhuma. Talvez por isso, resolveu guardar para si tais reflexões.
Nos últimos dias de Setembro, cessaram por fim os grandes frios, e os gelos e a neve acabaram por derreter. A praia, o planalto, a margem do Mercy e a floresta voltaram a estar praticáveis e os moradores da Casa de Granito celebraram festivamente a chegada da Primavera! A primeira coisa que Pencroff fez, foi passar revista às armadilhas.
Numa delas, encontrou um pecari fêmea com duas crias. Encantado com a caçada, carregou os bichos para casa, proclamando bem ao seu jeito:
- Ora vejam lá isto! Hoje é que vamos ter um jantar de categoria, senhor Cyrus! Nada mais, nada menos que leitão assado.
O jantar foi servido às seis, na sala de jantar da Casa de Granito. Depois de um caldo de aves, excelente, seguiram-se os famosos "leitões", isto é, as crias de pecari, que o marinheiro fez questão de trinchar e servir.
A carne era verdadeiramente saborosa e Pencroff quase devorava o seu quinhão com um apetite assinalável, quando, de súbito, soltou uma praga.
- O que é isso, Pencroff? - perguntou Cyrus Smith.
- Irra! Três vezes "irra"! Acho que parti um dente! - respondeu o marinheiro.
- Ora essa! Não me diga que os seus belos pecaris têm pedras? - gracejou Gedeão Spilett.
- Até parece que sim... - retorquiu Pencroff, retirando da boca um pequeno objeto duro.
Mas não era pedra nenhuma... Era um grão de chumbo!

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