- Um náufrago! - exclamou Pencroff. - Abandonado na ilha Tabor, apenas a cento e tal milhas de nós! Ah, senhor Smith, temos de ir lá!
- Amanhã mesmo - decidiu o engenheiro.
Cyrus Smith, que examinava atentamente o papel, continuou:
- Meus amigos, só pela maneira como esta mensagem está redigida, pela exactidão da longitude e da latitude, já podemos concluir que o náufrago da ilha Tabor é um homem bastante entendido em assuntos de marinha... Depois, deve ser inglês ou americano, visto que a nota foi escrita em língua inglesa.
- Quem quer que seja teve muita sorte! - comentou o repórter. - Olhem se o Pencroff não tivesse tido a ideia de construir um barco e se não tivesse sido hoje a estreia! A garrafa havia de partir-se contra as rochas e nunca chegaríamos a saber deste vizinho.
- É verdade! Mas que coincidência o Boaventura passar aqui precisamente agora! - disse Harbert.
Entretanto, o marinheiro continuava a manobrar o seu querido veleiro novinho-em-folha, que nesse momento contornava o cabo da Garra. Não havia reparos a fazer: o barco navegava em excelentes condições, donde a travessia até à ilha do náufrago era um empreendimento absolutamente viável.
Pelas quatro da tarde, lançavam ferro defronte da Casa de Granito e, logo a seguir ao jantar, trataram dos detalhes da viagem. O engenheiro Smith calculava que cinco dias bastariam para chegar a Tabor, procurar o abandonado e regressar à ilha.
Efetivamente, o percurso de cento e cinquenta milhas far-se-ia à vontade em quarenta e oito horas, caso não surgissem contratempos de ordem atmosférica.
Faltava decidir quem tomaria parte da expedição. Desde logo, o "capitão" Pencroff e o jovem Harbert, já muito hábil nas artes de marear; na opinião de Cyrus Smith não era necessário ir mais ninguém, mas Gedeão Spilett, como bom repórter que era, não queria perder pitada do acontecimento e teimou em acompanhá-los.
Assim, na madrugada seguinte, embarcaram os três depois de uma despedida um tanto comovida. Afinal de contas, sempre era a primeira vez que se separavam desde o desastre do balão! Cyrus Smith e Nab ficaram a acenar da praia, enquanto o Boaventura se fazia ao mar, rumo ao sul da ilha. Aí, virariam a proa a sudoeste.
A viagem decorreu sem incidentes e na manhã do dia 13 os nossos navegadores tinham terra à vista. Conforme puderam observar ainda ao largo, a ilha Tabor era completamente diferente da ilha Lincoln: bastante mais pequena, de litoral plano e pouco recortado e praticamente sem relevo, à excepção de uma pequena colina. À medida que se aproximavam da costa, um facto que lhes causou estranheza foi a total ausência de sinais de fumo. Spilett pegou no binóculo e pôs-se a observar a ilhota, mas em lado algum conseguiu descortinar indícios de que aquelas paragens fossem habitadas. Todavia, a mensagem era bem clara: havia um náufrago na ilha Tabor que tinha pedido socorro! Então não seria mais natural que estivesse vigilante a qualquer embarcação? Ao meio-dia, Pencroff, Spilett e Harbert desembarcaram numa praia de areia. A primeira coisa a fazer, concordaram eles, era subir a colina para obterem uma visão de conjunto da terra desconhecida, o que facilitaria em muito as buscas. Atingido o cimo num instante, os viajantes confirmaram a impressão anterior, isto é, de que o ilhéu não teria mais que dez quilómetros a toda a volta e que a faixa costeira era praticamente direita, sem cabos nem baías, promontórios ou enseadas. Quanto ao interior, apresentava-se uniformemente coberto por uma mancha de vegetação, cortada acolá pela fita prateada de um ribeiro.
- Como esta ilha é pequena! Para nós não chegava! -comentou Pencroff.
-Além disso, reparem que parece completamente desabitada - acrescentou o repórter.
Um tanto perplexos, os nossos amigos resolveram prosseguir as buscas ao longo de toda a orla marítima, mas ao cabo de quatro horas de marcha - quanto bastou para dar a volta completa à ilhota - continuavam sem encontrar o mais leve sinal do náufrago, nem sequer uma simples pegada na areia! Sem conseguirem atinar numa explicação para tão intrigante facto, voltaram ao Boaventura para descansar e comer qualquer coisa. A ideia agora era esquadrinhar o bosque de ponta a ponta e com isso ficaria concluída toda a exploração da ilha Tabor.
Mal tinham andado umas dezenas de metros por entre o arvoredo, viram cabras e porcos a fugir assustados. Porcos ali? As surpresas não tinham acabado; um pouco mais à frente, deparou-se-lhes uma clareira transformada em horta! Com aspecto bastante abandonado, sem dúvida, mas uma autêntica horta. Harbert ficou encantado por identificar, no meio das ervas que entretanto tinham invadido o terreno, batatas, cenouras, nabos, couves e chicória. Claro está que não iriam embora sem levar sementes de tudo, decidiu o rapaz imediatamente.
Ora a existência na ilha Tabor de animais e plantas de origem europeia, era prova evidente de que o local era, ou pelo menos tinha sido, habitado... Mas onde estaria agora a pessoa que tinha plantado aquela horta?
- É quase noite! - lembrou Pencroff. - Acho melhor voltarmos para bordo!
Nesse momento, Harbert exclamou:
- Olhem para ali! Parece uma casinha...
Era de facto uma cabana meio escondida pelo arvoredo, construída com tábuas de madeira e coberta com uma lona encerada. Pencroff empurrou a porta entreaberta e entraram todos. A cabana estava vazia! Chamaram e tornaram a chamar em voz alta, mas ninguém apareceu.
A luz do crepúsculo permitia apenas divisar um compartimento sujo e em desordem, com uma chaminé a um canto. O marinheiro apressou-se a acender a lareira com os ramos e gravetos que lá se encontravam e desse modo puderam ver melhor o que os rodeava.
A cena era, aliás, pouco animadora: uma cama tosca com lençóis desfeitos e amarelecidos pelo tempo, uma chaleira e uma marmita enferrujadas, trajes da marinha apodrecidos, uma Bíblia cheia de bolor... Num dos cantos, descobriram alguns utensílios de carpintaria e de lavoura, duas espingardas caçadeiras, um barril de pólvora e outro de chumbo. Uma coisa era evidente: nada daquilo era usado há muito tempo!
- Ora bem, se o náufrago morreu, como tudo indica, não se enterrou a ele mesmo - concluiu Pencroff. - Amanhã havemos de encontrar o que resta do corpo.
Como entretanto anoitecera, decidiram passar a noite na cabana abandonada. Ao nascer do dia, os três companheiros passaram de imediato ao reconhecimento do local. O casinhoto tinha sido feito com tábuas tiradas do casco de um navio, conforme reparou logo o marinheiro, e a confirmar esta opinião viram um nome escrito numa delas. Faltavam três letras e as restantes estavam meio apagadas pelo tempo, mas os colonos não tiveram dificuldade em decifrar o nome do navio naufragado: Britannia. Isso, porém, pouco interessava para o caso, visto que o objectivo da viagem era recolher o náufrago e desse, vivo ou morto, nem rasto! Os colonos sentiam-se bastante desanimados com a situação, mas não havia mais nada que pudessem fazer; pelo menos, regressariam à ilha Lincoln de consciência tranquila. E como também eram homens práticos, resolveram tirar proveito de tanta coisa boa ao abandono. Spilett e Pencroff encarregaram-se de levar os barris de chumbo e de pólvora para o Boaventura, assim como um ou dois casais de porcos para criação, enquanto Harbert ia à horta apanhar o maior número de sementes possível.
Estavam os dois "caçadores de porcos" em plena actividade, quando dos lados da clareira soou um grito agudo. Era Harbert! O jovem jazia por terra, derrubado por uma criatura selvagem que à primeira vista lembrava um macaco de tamanho considerável! Pencroff e Spilett, ambos cheios de força, agarraram o monstro, obrigando-o a soltar Harbert e depois amarraram-no solidamente.
- Ai se esse macacão te tivesse feito mal, eu nem sei... Mas eu acabo com ele! - exclamou Pencroff, todo exaltado.
- Mas, Pencroff, não é um macaco! - respondeu o rapaz, que se pusera de pé.
Só então os dois atentaram na criatura que tinham preso com cordas. Era uma criatura humana! Um homem! Mas que homem, santo Deus! Cabeleira longa e hirsuta, barba pelo peito, o corpo praticamente nu, a pele enegrecida por muitos sóis e sujidade, um olhar fugidio de irracional, enfim... um autêntico selvagem!
- Eis aqui o nosso náufrago! - disse, por fim, o repórter. -E a que estado chegou, o infeliz... Mas quem quer que seja, ou que tenha sido, é nosso dever levá-lo para a ilha Lincoln.
- Claro que sim! - respondeu Harbert. - E quem sabe se com os nossos cuidados não despertaremos nele qualquer sombra de inteligência...?
Desataram os pés do prisioneiro e obrigaram-no a andar até à praia. A estranha criatura não opôs resistência, nem tão-pouco fez menção de fugir. Limitava-se a caminhar ao lado dos colonos, deitando-lhes olhadelas furtivas e emitindo um assobio contínuo por entre os dentes. O náufrago subiu para bordo e os colonos meteram-no numa das cabicias; Pencroff ficou de guarda. Gedeão Spilett e Harbert voltaram ao interior do ilhéu, para terminar as tarefas interrompidas, e duas horas mais tarde estavam de volta com tudo o que fora combinado levar para a ilha Lincoln.
O prisioneiro, se assim se lhe podia chamar, estava calmo e parecia ser surdo-mudo. Para espanto dos colonos, chegada a hora do jantar, recusou-se a tocar na carne cozinhada que Pencroff lhe estendeu, mas não se fez rogado com um pato-bravo que Harbert acabara de matar... Com enorme bestialidade, devorou a carne crua num abrir e fechar de olhos!
- Santo nome de Deus! - exclamou o marinheiro, sinceramente penalizado. - Ao que este desgraçado chegou!
Na manhã seguinte, dia 15 de Outubro, o Boaventura levantou ferro e rumou a nordeste. O primeiro dia da travessia decorreu normalmente, com ventos de feição. O mar alto e a ondulação pareciam ter um efeito benéfico no prisioneiro, que se mantinha tranquilo na cabina da frente. Como antigo marinheiro, quem sabe se o facto de se encontrar a bordo não despertaria nele qualquer memória do passado? No dia 16, porém, o vento rodou para norte e começou a bater de proa, dificultando extraordinariamente o avanço do Boaventura. Com efeito, no dia seguinte de manhã, quando previam atingir as proximidades da ilha Lincoln, não havia sinal de terra no horizonte. Outro dia passou e a situação mantinha-se: nortada forte, mar encapelado e da ilha nem sinal! O marinheiro começou a ficar preocupado. Onde estaria a ilha, que diabo? Para piorar as coisas, as vagas abanavam a chalupa por todos os lados. A dada altura, uma onda maior passou por cima da amurada e varreu o convés. Nisto, o prisioneiro saltou para fora da cabina e com uma alavanca abriu uma fenda na amurada para que a água se escoasse; feito isto, enfiou-se outra vez no seu canto sem uma palavra. Os outros, estupefactos, deixaram- -no agir. Fora, certamente, o velho instinto de homem do mar a dar sinal de si.
Na noite de 19 para 20, as condições atmosféricas acalmaram um pouco.
Apesar do frio intenso, o vento amainou e o Boaventura, agora menos sacudido, aumentou de velocidade.
Porém, o grande receio de Pencroff é que se tivessem afastado demasiado da rota certa e que, por conseguinte, se tivessem perdido no vasto oceano. Pelas duas da manhã, o marinheiro que ia agarrado ao leme e de olhos pregados na escuridão, gritou:
- Uma fogueira! Uma fogueira! Um clarão salvador reluzia sobre a ilha Lincoln, a vinte milhas para nordeste! "Abençoado senhor Smith, que se lembrou de acender uma fogueira!", pensou o marinheiro. De seguida, rectificou o rumo e manobrou o Boaventura em direcção àquele farol que brilhava na noite como uma estrela de primeira grandeza.
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A Ilha Misteriosa
AléatoireSinopse: A história começa nos Estados Unidos da América, durante a guerra civil, durante o cerco de Richmond, Virginia, a capital dos Estados Confederados da América (Sul). Cinco americanos do norte, prisioneiros, decidem fugir utilizando um meio p...