A convalescença do jovem processava-se normalmente, o que bastante animava os companheiros, ansiosos por voltar para casa. Na verdade, por muito bem provida de mantimentos e munições que estivesse a cabana do curral, não se comparava ao conforto e segurança da Casa de Granito.
A falta de notícias de Nab não os preocupava por aí além, já que o corajoso criado de Smith, bem entrincheirado, não se deixaria surpreender... Todavia, ao engenheiro não agradava saber as suas forças divididas. Com Ayrton desaparecido e Harbert incapacitado, eram quatro contra cinco e as possibilidades de iniciativa estavam do lado do inimigo.
Spilett estimava em oito dias o período necessário a que Harbert ganhasse forças suficientes para suportar o caminho sem perigo. Oito dias! Isso remetia o regresso a casa só lá para os princípios de Dezembro... Por essa altura, naquela latitude, começava o calor e era, portanto, tempo das colheitas. Logo que regressassem ao planalto, teriam de se abalançar aos trabalhos agrícolas, adiando a projectada expedição por toda a ilha.
A permanência obrigatória no curral minava o ânimo dos colonos, principalmente de Pencroff que se tornara um agricultor convicto, entusiasticamente votado ao ciclo da terra e muito intransigente no que tocava a tempos de semear e colher.
Mas o mais perturbado e impaciente de todos era o próprio Harbert; doía-lhe ser o causador da retenção dos amigos e um empecilho à segurança dos companheiros e à defesa da ilha! Gedeão Spilett, esse, decidiu aliviar a ansiedade patrulhando as imediações acompanhado por Top; a carabina e a vigilância do cão bastavam-lhe para se sentir seguro. Havia penetrado uns duzentos metros na floresta, quando Top deu sinal de pressentir qualquer coisa; avançou para um tufo de arbustos, estacou e pôs-se a ganir baixinho com a cauda esticada.
Pessoa não seria, senão o comportamento do animal era diferente... O repórter, sabendo disso, avançou e afastou os arbustos, descobrindo um farrapo de pano sujo que não teve dificuldade em reconhecer: era feltro de lã tecido na Casa de Granito. Um pedaço da camisa de Ayrton, não havia dúvida! Na cabana, o achado foi favoravelmente interpretado. Ayrton estava vivo. Prisioneiro, era óbvio, mas vivo! Os piratas pretendiam, certamente, sacar-lhe informações acerca do número e dispositivo dos defensores da ilha, mas os colonos tinham como seguro que o ex-desterrado de Tabor não abriria a boca para os trair e que tudo tentaria para se evadir. Se o conseguisse, ignorante de que os companheiros se encontravam no curral, acorreria à Casa de Granito.
As patrulhas do repórter, cada vez mais longe do curral, não voltaram a fornecer mais pistas da presença dos piratas naquela zona. Por onde andariam e que novas malfeitorias estariam a preparar? A resposta não tardou! Top, que apanhara a porta aberta e se escapulira pela madrugada - estava-se a 29 de Novembro -, regressou a meio da manhã dando mostras de grande agitação. Como esfregasse com insistência o focinho nas pernas do dono, este, ao afagar-lhe a cabeça, descobriu um papel dobrado e preso na coleira improvisada. Era um bilhete de Nab! Cyrus leu-o com voz trémula:
"Sexta feira, seis horas. Os piratas estão a invadir o planalto."
Ora a presença dos bandidos só podia significar devastação e pilhagem! Harbert soergueu-se no leito e afirmou categórico:
- Meus amigos, eu quero partir! Sei que posso suportar a viagem. Vamos embora!
O onagro foi rapidamente atrelado à carroça, no fundo da qual estenderam Harbert em cima de um colchão, bem apoiado nos taipais. Estava um dia luminoso, cheio de sol, e a carroça avançava lentamente, com Top a correr e a farejar na dianteira.
Pencroff segurava nas rédeas, com a carabina ao lado, e o engenheiro e Spilett, de armas aperradas e prontas a disparar, protegiam os flancos. Iam a uns dois quilómetros do destino, quando, ao fazer uma curva, Pencroff susteve o onagro e soltou um grito de fúria:
- Ah! Os miseráveis!!
Uma espessa coluna de fumo subia do planalto, no local onde tinham construído a capoeira, a cavalariça e tudo o resto...
Subitamente, Nab apareceu-lhes pela frente, a correr esbaforido! Ainda ofegante, contou que os facínoras tinham partido há uma meia hora e que ele, como não sabia que vinham a caminho, ia ao curral dar-lhes conta da situação... Por fim, o valente negro perguntou pelo estado de Harbert; foi só então que repararam que o ferido tinha perdido os sentidos.
De repente, a destruição do planalto, a ameaça à Casa de Granito, a presença dos bandidos na ilha, tudo, enfim, foi relegado para segundo plano. No espírito dos colonos só pesava uma preocupação: o estado de Harbert! Teria algum solavanco reaberto as feridas? Teria ocorrido outra lesão interna? Gedeão Spilett, como "médico de serviço", estava desesperado. Deixaram a carroça à guarda de Nab, que também ficou incumbido de dar uma primeira vista ao planalto, e transportaram o ferido até casa numa padiola improvisada com o colchão e alguns troncos. Aí, Harbert recobrou a consciência e sorriu para os amigos, mas a debilidade era tanta que não conseguiu articular palavra.
Spilett examinou os ferimentos e, embora animado por verificar que cicatrizavam normalmente, não ficou sossegado.
Por que razão havia o jovem piorado daquela maneira? Entretanto, os piratas continuavam afastados da Casa de Granito e das Chaminés, porque provavelmente julgavam aqueles locais bem protegidos e não arriscavam. Ah! Se eles soubessem que os defensores eram apenas quatro! "Valente Ayrton!", pensava o engenheiro a caminho do planalto. Uma vez lá chegado, ficou estarrecido: os campos tinham sido positivamente devastados e as searas meticulosamente espezinhadas; a horta fora igualmente arrasada e as instalações consumidas pelo fogo! Os poucos animais, que tinham sobrevivido à matança, erravam em pânico pelo planalto. Muito pálido e controlando a ira com dificuldade, Cyrus Smith voltou para casa.
Harbert estava pior e as tisanas já não produziam qualquer efeito. O infeliz rapaz ora delirava, ora caía numa prostração profunda. Spilett, que não abandonava a cabeceira do doente, acabou por perceber a razão daquele agravamento. Com efeito, a alternância entre os delírios e as convulsões da febre e as fases de letargia só podia significar uma coisa: Harbert sofria de uma crise de malária, doença que certamente contraíra numa das idas aos pântanos mas que só agora se revelara, dado o enfraquecimento generalizado do organismo do rapaz por causa dos ferimentos.
Era urgente combater o mal, evitando novo febrão que poderia ser mortal! Como não tinham quinino - o remédio mais indicado contra a malária ou paludismo - ainda tentaram chás de casca de salgueiro, mas sem resultados...
Na noite de 7 de Dezembro, Harbert teve um novo ataque e tão violento, que Gedeão Spilett acreditou que o jovem amigo se despedia da vida. Era terrível verificar que o doente já não reconhecia ninguém, ora contorcendo-se delirante, ora quedando- -se inanimado! De repente, Top, possuído de estranha agitação, começou a rosnar, sendo logo acalmado pelo dono, em respeito pela agonia do moribundo.
Pelas cinco da manhã, mal despontava a aurora, Pencroff, que não conseguia ficar quieto de tanta aflição, andando de quarto em quarto entrou no salão.O grito de surpresa que soltou fez acorrer os outros. O marinheiro apontava para uma caixinha em cima da mesa. Spilett pegou-lhe e leu na etiqueta: "Sulfato de quinino"! O repórter abriu a caixa e levou aos lábios um pouco daquela substância branca... Não restavam dúvidas: era, de facto, quinino, o antipalúdico por excelência! De imediato, Nab recebeu ordem de ir fazer café a que o repórter juntou um pouco de medicamento, forçando Harbert a beber uma chávena inteira da mistura. O efeito foi, quase podia dizer-se, milagroso! Após dez dias de tratamento os ataques tinham sido debelados e o jovem, embora naturalmente debilitado, estava fora de perigo! Nenhum dos colonos tinha dúvidas de que o aparecimento do remédio fora obra do misterioso benfeitor.
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A Ilha Misteriosa
AléatoireSinopse: A história começa nos Estados Unidos da América, durante a guerra civil, durante o cerco de Richmond, Virginia, a capital dos Estados Confederados da América (Sul). Cinco americanos do norte, prisioneiros, decidem fugir utilizando um meio p...