Capítulo IV

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Nos princípios de Março, o calor continuava excessivo.
Sentia-se a atmosfera carregada de electricidade e era claro que se avizinhavam grandes trovoadas. Efectivamente, no dia 2, o vento rodou a leste e rebentou uma tempestade medonha! Aos relâmpagos que cruzavam os céus, sucedia-se o fragor surdo dos trovões e assim foi durante uma semana inteira. Os colonos resolveram aproveitar o mau tempo para trabalhar em casa, reparando e melhorando os interiores. Harbert, que havia crescido bastante no último ano, dedicou esses dias de reclusão à leitura e ao estudo, aproveitando a pequena biblioteca do caixote. O engenheiro via com satisfação o genuíno interesse do jovem pelos mais variados assuntos e registava as suas capacidades e qualidades morais. "Quando eu morrer", pensava, "ele é que há-de substituir-me".
A 9 de Março, as trovoadas passaram mas o céu permaneceu coberto de nuvens até ao final do mês, o último do Verão. Num desses dias, Pencroff, conversando com o engenheiro, lembrou-lhe uma promessa antiga:
- Senhor Cyrus, lembra-se de ter falado num aparelho para substituir as escadas de corda? Quando é que tratamos disso?
- Ah! uma espécie de elevador, não é verdade?
- Se é esse o nome... O que importa é que nos suba até à Casa de Granito!
- Nada mais fácil... - respondeu Cyrus Smith. - Mas faz assim tanta falta?
- Certamente, senhor Cyrus! Depois do essencial, devemos pensar no nosso conforto. Já não falo por nós, mas pelas coisas que temos de carregar às costas pelas escadas acima!
O engenheiro concordou e procedeu sem demora aos trabalhos de montagem de um elevador hidráulico, aproveitando para tal a energia de uma queda-d'água provocada para o efeito a partir do lago e que, passando pelo interior da Casa de Granito, ao fundo do corredor, se precipitava para o exterior.
O sistema era simples: sob a cascata, foi instalado um cilindro de palhetas, por sua vez preso a uma grande roda exterior destinada a enrolar um cabo forte; finalmente, do cabo pendia uma cesta a servir de elevador propriamente dito.
A inauguração do elevador teve lugar a 19 de Março, para satisfação geral. Dali em diante, toda a espécie de fardos, lenha, carvão e mantimentos, e os próprios colonos, foram içados daquela maneira até casa. O cão Top foi quem mais satisfeito se mostrou com este melhoramento.
Assim, tudo corria de feição quer na Casa de Granito, quer nas plantações do planalto, bem como na capoeira e no curral, onde a fêmea do onagro, as cabras e as ovelhas davam quotidianamente o leite necessário para a colónia... Na verdade, agora que se completava um ano de permanência na ilha - e apesar de longe da pátria - os colonos não tinham razões para se queixar! Num desses últimos dias de Março, ao entardecer, estavam os colonos reunidos na varanda do planalto a olhar o mar e a beber uma infusão de bagas de sabugueiro, com que substituíam o café, quando, de repente, Spilett perguntou ao engenheiro:
- Meu caro Cyrus, você já se lembrou de rectificar a localização desta ilha, agora que temos um sextante?
- E para quê? A ilha está muito bem onde está! - disse logo Pencroff.
- Sem dúvida! Mas quem sabe se não estamos mais perto de terra habitada do que nós julgamos? - insistiu o repórter.
- Tratarei disso amanhã - respondeu o engenheiro. - Confesso que, com tantas ocupações, me tinha esquecido do sextante.
No dia seguinte, feitas as observações e medições necessárias, Smith concluiu que a ilha Lincoln se encontrava exactamente a 150 graus 30 minutos de longitude oeste e a 34 graus 57 minutos de latitude sul.
- E agora, já que temos também um atlas, se víssemos onde é que ela fica exactamente? - sugeriu Spilett.
Harbert foi buscar o atlas e desdobrou o mapa do oceano Pacífico. De compasso na mão, o engenheiro não demorou a situar as coordenadas geográficas da ilha. De repente, exclamou:
- Mas já existe aqui uma ilha nesta parte do Pacífico!
- Deve ser a nossa! - disse Gedeão Spilett.
- Não é, não! Esta aqui encontra-se a 153" de longitude por 37" de latitude, isto é, a quase três graus para oeste e outros três para sul da ilha Lincoln.
- E que ilha é essa, senhor Smith? - perguntou Harbert.
- Chama-se ilha Tabor e é muito pequena... Apenas mais uma ilhota perdida no Pacífico, onde talvez nunca ninguém tenha desembarcado!
- Pois vamos nós até lá! - disse Pencroff.
- Nós? - perguntou o engenheiro.
- Sim, senhor Cyrus. Constrói-se um barco de coberta, que eu me encarrego de o dirigir!
E assim ficou decidida a construção de um barco apropriado para navegação ao largo, de modo a demandarem a ilha Tabor lá para Outubro, quando voltasse a estação do bom tempo. O plano do marinheiro, apoiado pelo engenheiro, era o seguinte: o barco devia medir uns doze metros de quilha e quatro de bojo, levar coberta e escotilhas, e, finalmente, vela armada em chalupa, muito fácil de manobrar. A madeira escolhida foi a de abeto e logo se procedeu ao abate das árvores, depois serradas em tabuões e pranchas. Oito dias depois, já mestre Pencroff, ex-carpinteiro naval de Brooklyn, trabalhava com afinco num estaleiro montado entre as Chaminés e a muralha de granito.
Enquanto isso, Spilett e Harbert prosseguiam com as suas expedições de caça. Um dia em que se tinham aventurado bastante para o interior das florestas ocidentais, fizeram uma descoberta preciosa.
O repórter, que seguia um pouco à frente, foi atraído pelo cheiro de uma planta de caule direito e ramoso, com flores dispostas em cachos e pequenas sementes.
Arrancou dois dos ditos caules e voltou para junto do rapaz:
- Vê lá o que será isto, Harbert.
- Onde encontrou esta planta, senhor Spilett?
- Ali adiante, numa clareira... E há lá muitas.
- Pois desde já lhe digo que o Pencroff vai ficar radiante! Isto é tabaco! O repórter e o companheiro fizeram uma boa provisão de folhas e voltaram para casa, combinando nada dizer ao marinheiro.
A preparação do tabaco ia levar quase dois meses e, nessa altura, surpreenderiam o companheiro com um cachimbo bem cheio!
- E, nesse dia, o nosso estimado amigo já não terá mais nada a desejar neste mundo! - concluiu o repórter.
Os meses de Abril e Maio decorreram sem outros acontecimentos dignos de nota a não ser o de ter dado à costa uma baleia enorme, que não devia pesar menos do que setenta toneladas! O monstruoso mamífero fora morto por um arpão, que se encontrava ainda cravado no flanco direito. Imagine-se agora a emoção de Pencroff, quando, tendo arrancado o arpão, leu nele a seguinte inscrição: Maria-Stella Vineyard
- Um navio de Vineyard! Um navio da minha terra! - exclamou ele. - O Maria-Stella! Um belo baleeiro, digo-vos eu que o conheço bem... Ah! meus amigos, um baleeiro de Vineyard!
E o marinheiro brandia no ar o arpão, sem cessar de repetir o nome da sua terra natal! ' Vineyard: cidnde portuciria do estado de Nova Yorque (Estados Unidos).
- Então haverá baleeiros por estas paragens? - perguntou Spilett.
- Oh! isto não quer dizer nada, senhor Spilett! Já se viu muitas baleias arpoadas no Atlântico Norte fazerem milhares e milhares de milhas, e acabarem por vir morrer ao Pacífico Sul. As emoções de Pencroff não iam ficar por ali; a 31 de Maio, no fim do jantar, quando o marinheiro se dispunha a levantar-se da mesa, Gedeão Spilett pôs-lhe a mão no ombro e obrigou- -o a sentar-se outra vez:
- Espere aí, mestre Pencroff, não se levante já! Falta a sobremesa.
- Obrigado, senhor Spilett, mas tenho de voltar ao trabalho.
- E uma chávena de café?
- Também não...
- E que tal uma cachimbada?
Pencroff deu um salto da cadeira e empalideceu ao ver que o repórter lhe estendia um cachimbo bem cheio de tabaco! Harbert, por seu lado, estendia-lhe uma brasa. O marinheiro não conseguia articular palavra; pegou no cachimbo, levou-o à boca, acendeu-o e puxou umas seis fumaças de seguida...
Tabaco! Era tabaco de verdade!
- Ó Divina Providência! Ó Criador de todas as coisas! Agora já não falta mais nada na nossa ilha. E quem fez esta descoberta? - perguntou, finalmente. - Foste tu, Harbert?
- Não, Pencroff, foi o senhor Spilett.
O marinheiro correu para o repórter e abraçou-o com tal veemência, que este cuidou ficar sem respiração!

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