Capitulo VIII

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Ora sucede que, no hemisfério sul, o mês de Maio corresponde a Novembro no hemisfério norte. O tempo refrescava de dia para dia e o Inverno, sem dúvida rigoroso naquelas paragens, não tardaria a chegar. A necessidade de encontrar uma habitação mais segura e confortável tornou-se, portanto, uma questão urgente e motivo de conversa da pequena colónia. Pencroff, apesar de muito afeiçoado às Chaminés, teve de concordar que aquele primeiro abrigo não oferecia muita segurança, até porque nada garantia que não fosse novamente invadido pelo mar.
- Além disso, devemos tomar algumas precauções... - acrescentou Cyrus Smith.
- Mas porquê, se a ilha não é habitada? - perguntou Gedeão Spilett.
- Talvez não seja, mas é bom lembrar que ainda não a explorámos completamente - respondeu o engenheiro. - E mesmo que não haja mais ninguém, o que aqui não faltam são animais perigosos! A verdade é que precisamos de um abrigo seguro, que não obrigue um de nós a ficar acordado para atear o lume. Temos de prever tudo, meus amigos, porque, além do mais, esta parte do Pacífico é muito frequentada por piratas...
- Pois quê? A tão grande distância de qualquer terra? - espantou-se Harbert.
- É verdade, meu rapaz - disse o engenheiro. - Os piratas são marinheiros tão excelentes, quanto temíveis malfeitores, e mais vale estarmos prevenidos.
- Pois bem - disse Pencroff -, abriguemo-nos, então, de selvagens de duas e de quatro patas! Mas, senhor Cyrus, antes de resolvermos qualquer coisa, não seria conveniente explorar um pouco mais a ilha? A sugestão do marinheiro foi aceite e, no dia seguinte, esquadrinharam palmo a palmo o planalto rochoso sobranceiro às Chaminés, na esperança de encontrar uma caverna suficientemente ampla.
Todavia, os penedos de granito, lisos e direitos, não apresentavam a menor cavidade, Dirigiram-se, depois, para as margens norte e leste do lago, que ainda não conheciam. Harbert e Nab seguiam à frente, enquanto Smith, Spilett e Pencroff caminhavam um pouco atrás, em passo mais vagaroso. O engenheiro pensava ir encontrar, finalmente, o escoadouro, ou cascata, por onde se fazia a descarga das águas do lago para o mar. Mas, depois da volta completa, de escoadouro nem sinal!
- E, todavia, ele tem de estar em algum lado! - repetia Cyrus Smith, bastante intrigado. - E se não está à vista, é porque só pode ser um canal escavado no maciço de granito.
- Diga-me lá, meu caro Cyrus, isso tem assim tanta importância? - perguntou Gedeão Spilett.
- Tem e bastante! - respondeu o engenheiro. - Se as águas escavaram uma saída através da penedia, é provável que haja grutas que nos sirvam de habitação... depois de desviarmos as águas, está claro!
- E se a água se escoar pelo fundo? Por um canal subterrâneo? - perguntou Harbert.
- Nesse caso teremos de construir a nossa habitação, visto que a Natureza não nos fornece nenhuma - rematou o engenheiro.
A tarde avançava e o grupo já se dispunha a regressar às Chaminés, quando Top, que corria à frente, começou a dar sinais de grande agitação. O inteligente animal ora corria para a margem, ora voltava para trás, ladrando furiosamente. O dono acabou por lhe prestar atenção:
- O que é isso, Top? O cão correu para o dono, voltou a disparar para a margem e mergulhou.
- Top! Aqui já! - gritou Cyrus Smith.
- Mas o que haverá lá em baixo? - perguntou Pencroff, observando atentamente a superfície do lago.
- Se calhar, o Top pressentiu algum animal - disse Harbert.
De repente, uma cabeçorra surgiu à superfície.
- É um manatim! - exclamou Harbert.
Mas não era um manatim; as narinas abertas na parte superior do focinho identificavam um dugongo, uma espécie de mamífero marinho. O enorme animal lançou-se sobre o cão, filou-o e mergulhou. Nab fez menção de se atirar ao lago com o seu pau ferrado, mas o patrão segurou-o pelo braço. Entretanto, desenrolava-se uma luta desigual e terrível debaixo de água! Era por demais evidente que Top não conseguiria resistir em semelhantes condições...
Subitamente, porém, perante o olhar atónito de Cyrus e dos companheiros, o cão reapareceu à superfície no meio de um círculo de espuma, subiu vários metros nos ares, voltou a cair e nadou para a margem sem ferimentos graves. Contudo, mais estranho ainda que o miraculoso salvamento de Top, era o facto de a luta continuar lá em baixo! Teria o dugongo sido atacado por outro animal mais forte e, por causa disso, largado o cão? A luta não durou muito, porém. De repente, as águas tingiram-se de sangue e o dugongo voltou a aparecer à tona, acabando por ir dar à margem sul do lago.
Os colonos correram para lá. O dugongo estava morto. O enorme corpo, com mais de quatro metros de comprimento e perto dos dois mil quilos de peso, apresentava uma ferida no pescoço que, pelo aspecto, dir-se-ia ter sido feita por um objecto cortante. Ora que espécie de animal marinho poderia ter morto o formidável dugongo daquela maneira? Ninguém fazia a menor ideia. Cyrus Smith e os companheiros empreenderam o caminho de regresso às Chaminés, vivamente impressionados com o incidente que acabavam de presenciar.
Ao outro dia, 7 de Maio, o engenheiro e o repórter voltaram à pequena praia do lago, onde o dugongo viera morrer. Smith não só tencionava aproveitar a gordura e a carne do enorme animal, como não deixava de pensar no misterioso combate submarino da véspera.
Olhava e tornava a olhar a superfície tranquila do lago, que cintilava sob os primeiros raios de sol, sem que dali tirasse qualquer conclusão...
- O que é que você acha, Cyrus? Não me parece ver nada de suspeito nestas águas... - disse o repórter.
- Realmente... - respondeu o engenheiro. - Só não consigo encontrar uma explicação para o que aconteceu ontem.
- Uma ferida muito estranha, na verdade! E a forma como o Top foi atirado para fora de água? Parecia, até, ter sido arremessado por algum braço possante e que o mesmo braço armado de um punhal matou o dugongo.
- Tem razão - concordou Cyrus Smith, pensativo. - Depois, meu caro Spilett, há outras coisas que também não consigo entender. Por exemplo, como é que me salvei das ondas e fui parar àquelas dunas? Eis aqui um mistério que ainda hei-de desvendar, mas, por enquanto, acho melhor não comentarmos nada disto com os nossos companheiros.
O engenheiro continuava a fitar a superfície do lago, quando, de súbito, se deu conta de uma corrente forte a puxar para o lado sul do lago, justamente em direcção ao ponto onde as margens formavam um ângulo. Naquele sítio, era bem visível que a água fazia uma espécie de remoinho e uma depressão, como se estivesse a ser sugada por um orifício qualquer... Cyrus Smith encaminhou-se rapidamente para lá, baixou-se e tratou de encostar o ouvido ao chão. Não havia dúvida! Aquele ruído surdo era o de uma corrente subterrânea.
- É aqui! - exclamou, pondo-se de pé. - É aqui que se faz a descarga para o mar através do granito! Grutas é que não faltarão e nós vamos aproveitá-las.
Cortou uma vara comprida, tirou-lhe as folhas e mergulhou-a no local onde a água fazia o sorvedouro. Imediatamente, o engenheiro constatou a existência de um grande buraco na parede de granito, apenas a uns quarenta centímetros da superfície.
Naquele ponto, a força da corrente era tal, que o ramo se lhe escapou da mão e foi arrastado pelo orifício abaixo.
- Já não tenho dúvida nenhuma! Aqui está o escoadouro e nós vamos pôr este túnel a descoberto.
- Mas como? - perguntou Gedeão Spilett.
- Fazendo descer o nível das águas. Um metro é quanto bastará.
- Mas como? - voltou a perguntar o repórter, sem entender.
- Abrindo outra saída para a água, maior do que esta, na margem mais próxima da costa!
- Essa é de penedos de granito...
- Que faremos explodir! - explicou o engenheiro. - E quando a água se escoar por aquele lado, esta abertura ficará a descoberto!
- E a água do lago vai desabar em cascata sobre a praia! - disse Spilett.
- Queda-d'água essa, que também nos há-de ser útil rematou Cyrus Smith.

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