Capitulo V

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Dos companheiros, apenas Harbert parecia partilhar da consternação do marinheiro. Nab estava demasiado feliz por voltar a ver o patrão e Gedeão Spilett, talvez pela mesma razão, resolveu não dar muita importância aos estragos:
- Ora, meu caro Pencroff, isso é o menos! Se quer saber, tanto me faz!
- Mas, senhor Spilett, ficámos sem o lume e sem nada para o tornar a acender!
- E não temos aqui o nosso engenheiro? Deixe que ele há-de arranjar maneira de fazer fogo.
Cyrus Smith continuava profundamente adormecido. Os amigos levaram-no para o corredor central e deitaram-no numa cama de algas e limos quase secos, tapando-o com as jaquetas e os casacos. É que, com a chegada da noite, o vento virara a nordeste e a temperatura descera consideravelmente. Para piorar a situação, a fúria do mar tinha levado a maior parte do entulho que vedava as aberturas entre os pedregulhos e, agora, havia correntes de ar por todo o lado.
As Chaminés estavam deveras desconfortáveis e a ceia, reduzida a litodontes, também não ajudou muito. Pela noite fora, com o frio a apertar, Pencroff não se cansava de lamentar a perda da fogueira.
No dia seguinte, 28 de Março, pelas oito da manhã, o engenheiro Smith acordou com a mesma preocupação da véspera, a sua ideia fixa:
- Ilha ou continente?
- Quanto a isso nada sabemos, senhor Smith - respondeu Pencroff.
- Como assim? Ainda não sabem?
- Mas vamos saber, mal o senhor nos possa servir de guia - acrescentou o marinheiro.
- Julgo já estar em condições para tal! - disse o engenheiro, pondo-se de pé. - Mais do que outra coisa, era a exaustão que me ia matando... Se puder comer alguma coisa, fico como novo. Têm lume, não é verdade?
- Ah! senhor Cyrus, infelizmente não temos, ou melhor, já não temos! E o marinheiro contou como tinham conseguido acender uma fogueira e como a tempestade do dia anterior a apagara.
- Ora bem - exclamou o engenheiro -, se não há fósforos, fazemo-los nós!
- Fósforos químicos? - espantou-se Pencroff.
- Exatamente!
- Como vê, não é assim tão difícil! - comentou o jornalista, dando uma palmada no ombro do marinheiro.
Saíram das Chaminés. As condições atmosféricas haviam melhorado e o Sol levantava-se no horizonte. Cyrus Smith sentou-se numa rocha, observando atentamente o que o rodeava.
Harbert levou-lhe uma mão-cheia de mexilhões e sargaços:
- É o que temos, senhor Cyrus!
- Obrigado, meu rapaz - agradeceu o engenheiro -, por agora, serve.
Saciada a fome na medida do possível, o engenheiro voltou ao assunto que, naquele momento, mais o preocupava:
- Bem, meus amigos, amanhã ficaremos a saber se estamos num continente ou numa ilha. Até lá, não podemos fazer mais nada!
- Então o lume? - perguntou Pencroff, que também tinha a sua ideia fixa.
- Lá iremos, lá iremos! - respondeu Cyrus Smith.Ontem, quando me trouxeram para aqui, pareceu-me avistar a oeste uma montanha...
- Exactamente! E bastante alta, por sinal - informou Gedeão Spilett.
- Amanhã, vamos subi-la até ao cume e veremos se esta terra é ilha ou continente - decidiu o engenheiro.
- Em qualquer dos casos, Cyrus, você faz alguma ideia onde é que fica este sítio? - quis saber o jornalista.
- Não posso saber ao certo, mas tudo indica que o furacão nos atirou para uma costa do oceano Pacífico. Mas se, pelo contrário, viemos dar a uma ilha deserta de algum arquipélago da Polinésia, então é melhor que nos preparemos para ficar aqui o resto das nossas vidas.
- O quê, meu caro Cyrus? Quer dizer, para sempre? - inquietou-se o repórter.
- Se tivermos a pouca sorte de isto ser uma ilha e, ainda por cima, afastada das rotas dos navios, é o que temos de mais certo! - corroborou o marinheiro.
- Isso é o que vamos descobrir, quando escalarmos a montanha até lá acima - concluiu o engenheiro Smith.
Seguidamente, combinaram entre si as tarefas daquele dia. O engenheiro e o repórter iam ficar nas imediações das Chaminés a explorar a praia e o planalto, enquanto os outros três voltavam ao bosque do Jacamar - assim haviam baptizado a mata - a fim de renovar as provisões de lenha e carne fresca.
Desta vez, contavam com a ajuda de Top na caçada. À partida, o marinheiro ia resmungando, sempre agarrado à sua ideia:
- Pois sim, pois sim, vamos caçar... E depois? Como é que vamos assar o que apanharmos? Se houver lume, quando cá chegarmos, só se foi um raio que o acendeu! Todavia, ao voltarem ao acampamento, pelas duas da tarde, carregando um corpulento exemplar de uma espécie de porco selvagem, tiveram a surpresa de avistar uma coluna de fumo que se elevava do lado de lá dos rochedos.
- Viva! Viva! Harbert, Nab, estão a ver aquilo ali? - gritou o marinheiro, fora de si.
Instantes depois, os três caçadores, completamente pasmados, olhavam ora para o engenheiro e para o repórter, ora para a fogueira crepitante, sem saber que dizer.
- Então, meu caro, o que é que eu lhe dizia? - exclamou Spilett. - Ora aqui tem um belo lume para assar esse magnífico animal que aí trazem!
- Mas quem o acendeu? - perguntou Pencroff.
- O sol!
- Quer dizer que o senhor Cyrus tinha uma lupa, não é verdade? - perguntou Harbert.
- Não, meu rapaz, não tinha, mas fiz - respondeu aquele.
E explicou como, sobrepondo os vidros do relógio dele e do de Spilett, conseguira improvisar uma lente capaz de concentrar os raios solares e de provocar a combustão de um pedaço de musgo seco.
O marinheiro ficou sem palavras, abismado com aquilo; mirava alternadamente o pequeno objecto "mágico" e o seu autor, cada vez mais convencido de que o engenheiro pertencia a uma espécie humana superior, próxima dos deuses. Finalmente, conseguiu articular:
- Senhor Spilett, não se esqueça de tomar nota disto no seu caderninho!
- Já tomei - respondeu o repórter.
O regresso do bom tempo, a bela fogueira e a ceia de porco-do-mato assado no espeto, rematada com pinhões e sargaços, animaram os cinco companheiros, que, nessa noite, dormiram um sono profundo e descansado.
Na manhã do dia seguinte, 29 de Março, fizeram-se os preparativos para a expedição. Pencroff avivou a fogueira e guardou um pouco de trapo queimado para servir de isca, assim como os restos do porco assado para a refeição daquela noite.
Os relógios de Cyrus Smith e de Gedeão Spilett, novamente com os respectivos vidros, marcavam sete e meia, quando os nossos exploradores, munidos de varas à laia de cajados, deixaram as Chaminés em direcção à montanha.
A travessia da floresta foi o caminho escolhido por ser o mais directo, e, pelas dez horas, deixavam para trás o denso arvoredo. A montanha erguia-se diante deles, composta por dois cones sobrepostos e contrafortes com uma configuração tão estranha que, desde logo, chamou a atenção do grupo. Com efeito, a elevação parecia apoiada numa imensa garra com as enormes unhas cravadas no solo, entre as quais se avistavam vales verdejantes. No topo do primeiro cone, a uns mil metros de altitude, assentava um segundo cone, como se fosse uma espécie de boina caprichosamente colocada à banda... Ora era justamente até ao cimo do segundo cone que os nossos amigos queriam chegar.
O engenheiro Smith confirmou a origem vulcânica da região e decidiu que a escalada se fizesse por um dos contrafortes.
Seguiam em fila, com Harbert e Nab na dianteira, logo seguidos por Smith e Spilett; Pencroff fechava a marcha. Pelo caminho, notaram a presença de muitas espécies de animais, até que, a dada altura, toparam com uns, de chifres arqueados para trás, que o marinheiro se apressou a nomear:
- Olha, olha, carneiros!
Todavia, não se tratava de carneiros comuns, mas sim de cabras-monteses, uma espécie muito vulgar em zonas montanhosas e de clima temperado, conforme explicou Harbert.
- Mas têm pernas e costeletas boas para assar? - perguntou Pencroff.
- Claro que sim! - respondeu o rapaz.
- Pois então, para mim são carneiros! - rematou o marinheiro, despedindo-se dos animais com um "até à vista!" tão cómico, que os outros não contiveram o riso.
A subida continuou, cada vez mais penosa, devido à fadiga e ao terreno, que se ia tornando mais íngreme e agreste. Àquela altitude, a vegetação já escasseava, constando apenas de alguns pinheiros dispersos e retorcidos pelos ventos.
Pelas seis da tarde, estavam a uns escassos duzentos metros do planalto superior do primeiro cone; porém, a noite aproximava-se e urgia providenciar um acampamento. Escolheram um local abrigado entre uns penhascos e Pencroff e Nab encarregaram-se de acender uma fogueira com pederneira e o trapo queimado a servir de isca. Em breve, ardia um lume de tojos secos apenas destinado a aquecer o grupo de exploradores, já que a ceia estava assegurada com os restos do assado da véspera e uma boa quantidade de pinhões.
Cyrus Smith teve, então, a ideia de ir explorar o planalto circular onde assentava o cone superior da montanha. Na verdade, o engenheiro não conseguia descansar, enquanto não esclarecesse uma dúvida que muito o preocupava, isto é, se seria possível escalar o segundo cone ou, pelo menos, contorná-lo pela base; se nem uma coisa, nem outra fosse praticável, toda a vista da parte ocidental daquela terra lhes ficaria vedada, gorando-se assim, pelo menos em parte, a finalidade da expedição.
O jovem Harbert dispôs-se a acompanhá-lo, enquanto o marinheiro e o negro tratavam das instalações para a dormida e o repórter tomava nota dos acontecimentos do dia.
Apesar da semi-obscuridade e do cansaço, escalaram rapidamente os últimos metros que os separavam do topo do primeiro cone, deparando-se com a enorme cratera de um vulcão já extinto. A lava solidificada formava saliências caprichosas no seu interior, assim como uma espécie de escadaria natural a facilitar a descida e a subida do outro lado.
Sem hesitar, o engenheiro e o rapaz desceram pela cratera e galgaram os cerca de trezentos metros que os separavam do topo do cone superior. A escuridão era agora quase completa. Como seria aquela terra desconhecida? Estaria completamente rodeada pelo mar ou unida a um continente do Pacífico? Justamente para o lado oeste, o céu carregado de nuvens adensava ainda mais as trevas, não deixando vislumbrar se, ali, havia terra ou mar...
Mas, subitamente, as nuvens abriram-se num rasgão e a Lua, em quarto crescente, surgiu perto da linha do horizonte, reflectindo o seu brilho numa superfície... líquida! Cyrus Smith agarrou com força a mão do rapaz e declarou gravemente:
- É uma ilha!

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