Capitulo VII

99 5 0
                                        

Essa era a situação real! Tudo estava por fazer e os colonos tinham de começar pelo princípio. Não possuíam, sequer, as ferramentas necessárias para fabricar outras ferramentas e utensílios e os recursos naturais existentes na ilha encontravam-se no seu estado bruto... Todavia, o engenheiro Smith conhecia bem o zelo, a inteligência e as aptidões dos companheiros.
Gedeão Spilett contribuiria com os seus conhecimentos de jornalista culto e talentoso para a colonização da ilha, sem falar da paixão que nutria pela caça, uma tarefa absolutamente vital. Harbert, esse rapaz corajoso e tão instruído em ciências naturais, daria uma ajuda igualmente preciosa. Nab era a dedicação em pessoa; infatigável e robusto, com uma saúde de ferro, percebia alguma coisa do trabalho de forja, o que seria da maior utilidade.
Quanto a Pencroff, havia navegado por todos os oceanos e trabalhado como carpinteiro nos estaleiros de Brooklyn, além de ter sido alfaiate, jardineiro e cultivador durante as férias, etc.; enfim, como bom homem do mar que era, sabia fazer de tudo um pouco.
Na opinião de Cyrus Smith, a primeira tarefa que se impunha era a construção de um forno, que seria alimentado a lenha e carvão.
- E o forno servirá para quê? - quis saber Pencroff.
- Para fabricar os utensílios de barro de que precisamos respondeu o engenheiro.
- E com o que é que vamos fazer o forno?
- Com tijolos de argila. A caminho, meus amigos, e, para não perdermos tempo a andar para trás e para a frente, ficaremos instalados no local. O Nab fica encarregado de levar as provisões e do fogo trataremos lá.
- Ah! se tivéssemos uma arma qualquer para caçar... Um arco e flechas, pelo menos! - disse o repórter.
- Ou uma faca - lembrou o marinheiro.
- Sim, uma faca, uma lâmina cortante... - murmurou Smith, como se falasse consigo mesmo.
Repentinamente, o olhar animou-se-lhe:
- Aqui, Top! O engenheiro segurou na cabeça do cão, tirou-lhe do pescoço a coleira de fino aço temperado, e partiu-a em duas metades.
- Aqui estão as nossas facas, Pencroff!
Amolaram o rebordo das lâminas de aço numa pedra e, depois, afiaram o gume em pederneira mais fina, que, por sinal, abundava na praia. Algum tempo depois, os colonos já dispunham de duas lâminas cortantes, solidamente amarradas a cabos improvisados.
Partiram em direcção à margem ocidental do lago, onde, na véspera, Cyrus Smith havia reparado numa porção de terra argilosa. Pelo caminho, Harbert descobriu diversas árvores, das quais os índios da América do Sul usam os ramos para fabricar arcos. Apenas faltava encontrar uma planta apropriada para fazer a corda do arco. Serviram-se de uma espécie de hibisco com fibras tão resistentes, que se podiam comparar a tendões de um animal. E foi assim que Pencroff conseguiu arranjar arcos suficientemente fortes e eficazes. Quanto às setas, o destino se encarregaria de fornecer qualquer coisa que pudesse substituir o ferro para as pontas.
Chegados ao local indicado pelo engenheiro, os nossos amigos deitaram mãos à obra. Trataram de retirar com areia a gordura própria da argila e, depois, moldaram à mão os tijolos que, depois de secos, passariam por cozedura em fogo de lenha.
Foram dois dias inteiros de intenso trabalho manual, ao cabo dos quais os colonos tinham prontos e alinhados no chão três mil tijolos. A cozedura não teria lugar, senão daí a três ou quatro dias, de modo que o grupo aproveitou a espera para juntar lenha, sem falar nas caçadas pelas imediações.
Estas expedições eram agora bastante mais proveitosas, desde que Pencroff resolvera a questão das pontas das flechas.
Foi um porco-espinho apanhado por Top o fornecedor dos picos aguçados que o marinheiro atou com firmeza às extremidades de paus fininhos e direitos. Não tardou muito que Gedeão Spilett e o jovem Harbert se tornassem razoavelmente hábeis no manejo do arco e das flechas assim improvisadas e, desse modo, não mais faltaram no acampamento boas peças de caça, quer de pêlo, quer de penas, como porcos e galos-do-mato, cutias, pombos-bravos, etc.
Ora durante essas incursões pela floresta, sempre não muito longe da tijolaria, os caçadores acabaram por notar certos indícios da presença de animais de grande porte, o que levou o engenheiro Smith a recomendar-lhes a maior cautela, convencido que ali poderia haver feras temíveis. E estava certo, porque, certa vez, o repórter e o rapaz avistaram um animal muito semelhante ao jaguar, que só por sorte não os atacou.
E assim chegou o dia 6 de Abril, uma quinta-feira. Treze dias tinham decorrido desde que os colonos tinham ido parar àquela costa e era nesse mesmo dia que iam iniciar a construção do forno, começando pela cozedura dos tijolos de barro.
Empilharam molhos de lenha, rodeando-os depois com camadas sobrepostas de tijolos até formar uma grande cuba, e puxaram fogo à lenha; o braseiro ardeu durante quarenta e oito horas, constantemente alimentado pelos colonos. Finalmente, com cal viva conseguida a partir de pedras de carbonato de cálcio, decompostas pelo calor, e uma espécie de argamassa feita com cal e areia, construíram um forno magnífico, cuja chaminé se elevava a alguns metros de altura.
A clareira à beira do lago lembrava agora uma verdadeira oficina, e Pencroff estava disposto a jurar que dali podiam sair todos os produtos da indústria moderna.
As primeiras coisas a serem fabricadas no forno a carvão resumiram-se, porém, aos mais vulgares recipientes e utensílios domésticos, moldados com argila misturada com cal e um pouco de quartzo. A cozinha das Chaminés ficaria equipada de potes, tigelas, pratos, jarros e outros objectos, tão preciosos como se da mais fina porcelana se tratasse! Convém referir que Pencroff, desejoso de experimentar a qualidade do barro, resolveu fabricar alguns cachimbos, bastante toscos aliás, mas que ele achou uma perfeição. E o tabaco? "Ora, o tabaco há-de aparecer como tudo o resto", pensava ele.
No caminho de volta às Chaminés, carregados com a louça recém-fabricada, o engenheiro fez outra descoberta muito conveniente: uma planta esponjosa do género das artemísias, que, depois de seca e impregnada de salitre, se torna bastante inflamável. Para grande satisfação do marinheiro, ficava, assim, assegurada a isca necessária para acender o fogo.
Dias depois, 17 de Abril, precisamente a segunda-feira a seguir ao Domingo de Páscoa, Pencroff perguntou ao jornalista, logo pela manhã:
- Senhor Spilett, o que é que vamos fazer hoje?
- O nosso engenheiro é quem decide - respondeu ele.
Ora ficou resolvido que naquele dia, depois de fabricantes de tijolos e de louça de barro, os companheiros seriam operários metalúrgicos! O engenheiro anotara a existência de jazidas de óxido de ferro e de pirite na região noroeste da ilha, e tinha esperanças de poder obter, do primeiro, ferro em estado puro.
- Então vamos trabalhar o minério de ferro, senhor Cyrus? - perguntou o marinheiro.
- É verdade, meu amigo! - foi a resposta do engenheiro.
- E, à conta disso, vamos começar por uma caçada às focas no ilhéu da Salvação.
- Caça às focas? - Pencroff voltou-se para Spilett, cheio de espanto.
- Pois serão precisas focas para fabricar ferro?
- Se é o Cyrus quem diz, é porque devem ser - respondeu Spilett.
A maré estava no seu nível mais baixo, quando os cinco amigos atravessaram o canal que os separava da ilhota. Uma vez no lado de lá, a primeira coisa que viram foi uma colónia de pinguins, mas os caçadores, armados de varapaus, não estavam interessados nestes animais. Passaram ao lado e dirigiram-se à ponta norte do ilhéu. O sítio tinha sido bem calculado, porque, efectivamente, lá estavam seis focas deitadas na praia, ao sol da manhã. Rodearam-nas cautelosamente, e atacaram de todos os lados ao mesmo tempo, abatendo duas à paulada. As outras conseguiram fugir para o mar.
- Ora cá tem as suas focas, senhor Cyrus! - proclamou o marinheiro.
- Muito bem! - disse Cyrus Smith. - As peles hão-de servir para fazermos os foles da forja.
Nab e Pencroff começaram, imediatamente, a esfolar os animais, enquanto o engenheiro e o repórter aproveitavam para uma volta de reconhecimento pela pequena ilha. Seis horas mais tarde, quando a maré vazou outra vez, voltaram a atravessar o canal e regressaram às Chaminés.
Três dias depois, as peles de foca, secas e cosidas com fibras vegetais, tinham-se transformado num fole indispensável a qualquer trabalho de forja. Estava-se a 20 de Abril e o repórter anotou esse dia como o primeiro do "período metalúrgico" da pequena colónia.
As jazidas de minério estavam situadas na base de um dos contrafortes da montanha, que os colonos haviam baptizado com o nome de monte Franklin. Dada a distância das Chaminés, cerca de dez quilómetros, era impensável ir e vir todos os dias, pelo que ficou assente que acampariam no próprio local dos trabalhos. Pelas cinco da tarde, depois de terem atravessado a floresta, atingiram a orla do denso arvoredo.
O engenheiro decidiu que ficariam ali mesmo, com o monte à vista e perto do ribeiro e das jazidas. As pesquisas geológicas ficariam para o dia seguinte. Em menos de uma hora, fizeram uma cabana de troncos e ramos entrelaçados e acenderam uma fogueira. A seguir ao jantar de carne no espeto, os nossos amigos acomodaram-se para descansar e, pelas oito, já dormiam todos a sono solto, excepto aquele que ficara com a incumbência de vigiar o lume, única maneira de afastar algum animal perigoso.
Na manhã seguinte, os colonos dirigiram-se aos terrenos junto à nascente do riacho e começaram a recolher grandes quantidades de minério de ferro e de carvão. Os blocos de óxido de ferro eram, depois, partidos em bocados pequenos e limpos de impurezas. Orientados por Cyrus Smith, dispuseram o minério e o carvão em camadas sobrepostas e o novo fole de peles de foca entrou em acção! Com o primeiro bocado de ferro puro, conseguido por aquele método bastante rudimentar, improvisaram um martelo e com ele forjaram um segundo numa bigorna de granito. Ao cabo de quatro dias de muito trabalho e paciência infinita, os colonos tinham forjado várias barras de ferro, com as quais fabricaram ferramentas, como pinças, tenazes, picaretas, etc. Seguidamente, graças aos conhecimentos de Cyrus Smith, a partir do ferro puro chegaram ao aço, misturando o primeiro num cadinho de barro com carvão em pó.
Desse modo foi possível fazer machados e machadinhas, pás, picaretas, martelos e pregos.
Finalmente, a 5 de Maio, os nossos ferreiros regressaram às Chaminés, prontos para novas tarefas.

A Ilha MisteriosaOnde histórias criam vida. Descubra agora