As obras de apropriação e arranjo da nova morada começaram logo no dia seguinte, 22 de Maio. Na verdade, os colonos não viam a hora de trocar as Chaminés por aquela vasta e cómoda guarida, embora fosse intenção do engenheiro Smith não abandonar totalmente o local que lhes servira de primeiro abrigo na ilha, aproveitando-o para aí instalar uma oficina de trabalhos mais pesados.
Antes de tudo, porém, o primeiro cuidado dos colonos foi o reconhecimento da fachada exterior da caverna. Caminhando praia fora, chegaram ao local onde caíra a picareta. Na perpendicular, a meio do penhasco de granito, lá estava o orifício aberto na véspera, a menos de trinta metros do solo. Era justamente naquela parede virada a leste, que Cyrus Smith contava abrir a porta e as janelas com vista para o mar. Tal empreendimento não se apresentava tarefa fácil, caso contassem apenas com as picaretas e a força dos braços. Felizmente, porém, o nosso engenheiro era homem de grandes recursos e tratou de usar os restos da nitroglicerina, que, cuidadosamente aplicados, rebentaram o granito nos sítios escolhidos. Feito isto, desbastaram-se e alisaram-se os buracos a golpe de picareta e alvião, ficando a Casa de Granito dotada de uma porta, frestas e óculos, para além de cinco janelas em ogiva. A luz do dia entrava a rodos pela nova morada, iluminando-a até aos recantos mais escondidos! De acordo com o plano traçado por Cyrus Smith, o espaço da caverna, ou melhor dizendo, da Casa de Granito, ficaria dividido em cinco quartos virados a nascente e separados por um corredor de vários compartimentos destinados a armazenar as reservas de alimentos e de lenha, os utensílios e as ferramentas.
Do lado direito da entrada, seria instalada a cozinha e, logo a seguir, a sala de jantar e um "quarto de hóspedes", paredes- -meias com o salão principal.
Lugar é que não faltava para acomodar tudo e todos! Adoptado este plano, restava dar-lhe execução, a começar pela escada exterior. Com efeito, a entrada pelo escoadouro do lago obrigava os nossos colonos a uma grande volta e, consequentemente, a fadigas e perdas de tempo desnecessárias. Assim se fez, e alguns dias depois, a escada da Casa de Granito estava pronta, tão sólida e resistente como o mais forte cabo. Na verdade, não era uma única escada, mas sim duas, porque, a fim de tornar a subida mais fácil, o engenheiro resolvera fazer uma espécie de patamar numa saliência natural situada a meia altura da fachada rochosa. Desse modo, havia uma escada da porta ao patamar e outra dali até à praia. Os montantes, ou seja, os suportes laterais, foram cuidadosamente confeccionados com fibras de uma espécie botânica da família dos juncos, solidamente atadas e entrelaçadas com a ajuda de um sarilho, enquanto os degraus, habilmente aparelhados por Pencroff, eram de madeira de cedro vermelho, muito leve e resistente.
Aproveitando as fibras vegetais teceram-se mais cordas para instalar um guindaste que, embora grosseiro, permitia içar os tijolos e outros materiais até ao nível da entrada, situada a uns vinte e cinco metros acima do solo. De resto, a ideia do engenheiro Smith era montar, mais tarde, um elevador hidráulico.
Os nossos homens habituaram-se rapidamente a utilizar as escadas de corda, mas tal exercício apresentava sérias dificuldades para um cão. Foi Pencroff que, com infinita paciência, ensinou Top a conseguir a proeza, digna dos seus congéneres do circo! Enfim, a 28 de Maio, o acesso exterior estava definitivamente instalado, dando-se início ao arranjo interior da Casa de Granito. E em boa hora, diga-se de passagem, que a estação invernosa já se fazia sentir! As obras interiores ocuparam todo o mês que se seguiu.
A pequena colónia trabalhou dias a fio com entusiasmo e afinco, e também, porque não dizê-lo, alegria, graças ao sempre presente e contagiante bom-humor de Pencroff. O projecto do engenheiro Smith foi seguido à risca e, nos finais de Junho, a Casa de Granito estava dividida em quartos com janelas para o mar, cozinha, salas de jantar e de estudo, despensas, arrecadação e oficina.
Mal os trabalhos de pedreiro ficaram concluídos, Cyrus Smith decidiu que, por questões de segurança, se tapasse definitivamente o orifício do antigo escoadouro do lago. A entrada do túnel foi, então, oculta com pedregulhos depois cobertos com ervas e ramagens. Antes, porém, e a pensar no abastecimento de água potável à Casa de Granito, abriram uma pequena abertura na parede do escoadouro abaixo da superfície do lago, o que garantiu o caudal suficiente para as necessidades do dia-a-dia.
Com as obras principais terminadas e o aparecimento das primeiras tempestades de Inverno, os colonos puderam apreciar devidamente os confortos e as vantagens da nova morada, em contraste com as precárias condições das Chaminés. Mas nem tudo estava pronto! Apesar das chuvadas e do frio cada vez mais intenso, havia ainda outras tarefas a cumprir, de importância vital para todos. Grandes carregamentos de lenha e de carvão foram içados para a Casa de Granito e acomodados na arrecadação; ao mesmo tempo, Gedeão Spilett e Harbert, que nunca tinham deixado de trazer diariamente a carne fresca destinada às refeições dos colonos, passavam agora a maior parte do tempo em excursões de caça e pesca pelos arredores, encarregando-se Nab de salgar ou de pôr ao fumeiro essas provisões de carne e peixe para o Inverno.
Um dia, numa dessas saídas, em vez da habitual caça aos javalis e porcos-do-mato na floresta à beira do rio, o repórter e o rapaz resolveram dirigir-se para as bandas da margem sudoeste do lago.
Era uma zona praticamente desconhecida e foi com grande satisfação que os nossos caçadores descobriram um prado fértil e verdejante, que, para além de inúmeras tocas de coelhos, oferecia uma grande variedade de ervas aromáticas e medicinais. O jovem Harbert, sempre interessado pelas coisas da Natureza e conhecedor das propriedades terapêuticas de algumas dessas plantas, tratou imediatamente de colher uma quantidade apreciável de manjericão, tomilho, erva-cidreira, serpão e rosmaninho. Ao fim da tarde, já em casa, Pencroff quis saber para que serviam todas aquelas ervas.
- Para nos tratarmos, quando estivermos doentes - respondeu o rapaz.
- Ora essa! E porque havíamos de adoecer, se não há médicos na ilha?
Já se vê que este comentário do marinheiro ficou sem resposta. Entretanto, as condições atmosféricas agravavam-se, com aguaceiros e fortes vendavais quase todos os dias. Apesar do tempo incerto, os colonos ainda empreenderam uma expedição ao ilhéu da Salvação, com a finalidade de obter a matéria-prima necessária ao fabrico de velas. Fora Pencroff quem levantara o problema da iluminação nocturna da Casa de Granito e Cyrus Smith, como de costume, tivera resposta pronta:
- Nada mais fácil de resolver!
- Como assim?
- Vamos caçar focas e com a gordura fabricaremos as nossas velas! Bastará para tanto misturá-la com cal e ácido sulfúrico.
De modo que, para haver luz que alumiasse a casa durante as longas noites da estação fria, foram sacrificadas seis focas.
Além das gorduras, os colonos aproveitaram também as peles, que serviriam para fazer sapatos. No tocante ao vestuário, porém, é que ninguém tinha ideia, nem mesmo o engenheiro, de como substituir as roupas que traziam no corpo e que, à força de serem lavadas, acabariam inevitavelmente por se estragar.
Do fabrico das velas, passou-se ao dos móveis de primeira necessidade. Aí, Pencroff orientava os trabalhos como verdadeiro mestre de marcenaria e carpintaria e, em breve, os compartimentos estavam guarnecidos de mesas, bancos, armários e cabeceiras para as camas de colchão de junça; nas prateleiras da cozinha, alinhavam-se as louças e utensílios de barro, ao lado do magnífico forno de tijolos e da pedra de lavar. Enfim, pode dizer-se que a ilha Lincoln, embora longe de completamente explorada, provia já a quase todas as necessidades da colónia. Mas de uma coisa sentiam os colonos grande falta: pão.
Certo dia chovia torrencialmente lá fora - estavam todos reunidos na sala grande, quando, de repente, Harbert exclamou:
- Olha, olha, um grão de trigo!
- Um grão de trigo? - perguntou vivamente o engenheiro.
- Sim, sim, mas só um! Estava aqui na costura do meu casaco...
E o rapaz explicou que, em Richmond, costumava andar com trigo nas algibeiras para dar de comer aos pombos.
- Olha que grande descoberta, meu rapaz! - comentou Pencroff. - Para o que é que nos servirá um único grão de trigo?
- Para fazer pão - foi a resposta breve de Cyrus Smith.
- E porque não, também, tortas e bolos? - volveu o marinheiro, incrédulo.
O engenheiro pegou no grão e examinou-o atentamente.
Verificando que estava em bom estado, voltou-se para o marinheiro:
- Pencroff, você tem alguma ideia de quantas espigas de trigo pode dar um só grão?
- Uma, suponho eu.
- Dez, meu amigo! E sabe quantos grãos tem uma espiga? Oitenta, pelo menos. Ora bem, se semearmos este grãozinho, e ele medrar, colheremos oitocentos grãos que, por sua vez, produzirão seiscentos e quarenta mil e por aí fora... A proporção é esta! Os companheiros, pasmados, nem queriam acreditar.
E, no entanto, as contas de Cyrus Smith eram exatas.
- Sendo assim, temos de semear este grão! - disse Harbert.
A altura do ano não podia ser mais propícia. Subiram ao planalto e escolheram um sítio adequado, abrigado dos ventos e exposto ao sol. Depois, com a terra limpa de insectos e de vermes, procedeu-se, com alguma solenidade, à sementeira do pequeno grão, promessa de avultadas colheitas! A partir daí, não se passou um só dia, sem que Pencroff subisse ao planalto a inspeccionar a sua "seara de trigo", como fazia questão de dizer. Nestas tarefas e cuidados foram decorrendo as primeiras semanas de Julho, que no hemisfério sul corresponde ao mês de Janeiro. Após chuvas intermináveis, a temperatura desceu bruscamente para valores abaixo de zero, fazendo gelar a superfície do lago.
Ora num desses dias de tempo frio mas bastante seco, os nossos colonos resolveram fazer uma excursão até uma zona da ilha aonde nunca tinham ido. Agasalhando-se o melhor que podiam, desceram da Casa de Granito às primeiras horas da manhã, decididos a explorar a costa sudeste, para lá do rio Mercy. Depois de atravessarem o curso de água, praticamente gelado, dobraram uma ponta e foram dar a uma extensa praia.
Seriam oito da manhã e o Sol nascia no horizonte, sobre um oceano tão azul e tranquilo como qualquer golfo do Mediterrâneo; não soprava a mais leve brisa e o céu estava limpo. Lá ao fundo, a umas centenas de metros para sul, perfilava-se um cabo recurvado em forma de garra, enquanto que para a direita se estendia uma vasta região pantanosa, que terminava a oeste numa imensa mancha de floresta. Decerto, não faltaria naqueles paúis grande variedade de aves aquáticas a prometer uma boa caçada! Os exploradores sentaram-se para o almoço de carnes frias e chá de ervas, que Nab tivera o cuidado de trazer.
Enquanto comiam, observavam a grande baía invadida por blocos de gelo, tão desolada como uma praia da região antárctica e tão diferente da costa da ilha Lincoln onde se tinham instalado...
Gedeão Spilett quebrou o silêncio, exprimindo o que ia na cabeça de todos:
- Se o furacão nos tivesse atirado para estas bandas, mas que péssima impressão não teríamos da nossa futura terra!
- Estou convencido de que nem chegaríamos à praia - respondeu o engenheiro. - O mar aqui é muito fundo, sem rochas nem bancos de areia... Não, aqui não havia salvação possível!
Finda a refeição, os colonos prosseguiram a exploração e dali a pouco chegavam aos pântanos cobertos de limos, juncos e erva espessa. Era de recear que, pelo tempo quente, aquele local fosse bastante insalubre, carregado dos miasmas que provocam o paludismo.
Como se previa, o imenso paul era habitado por muitas aves aquáticas que sobrevoavam a erva alta. Eram tantos os patos-bravos, as narcejas e as galinholas, e em bandos tão cerrados, que bastaram umas flechadas para abater uma dúzia de patos- -tadornos, que Top corria a recolher. Sem dúvida que os colonos tinham ali uma abundante reserva de caça! Pelas cinco da tarde, Cyrus Smith e os companheiros empreenderam o caminho de regresso, atravessando o pântano dos Tadornos, como passaram a chamar-lhe.
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A Ilha Misteriosa
De TodoSinopse: A história começa nos Estados Unidos da América, durante a guerra civil, durante o cerco de Richmond, Virginia, a capital dos Estados Confederados da América (Sul). Cinco americanos do norte, prisioneiros, decidem fugir utilizando um meio p...