Capítulo V

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O mês de Junho trouxe o Inverno, como sucede no hemisfério sul, e a colónia preparou-se para os rigores da estação, confeccionando roupas e cobertores quentes com a lã dos carneiros selvagens. Os grandes frios, porém, só começaram verdadeiramente depois do dia 20, e Pencroff foi forçado a interromper a construção do barco. Seguidamente, veio a neve, não sem antes os colonos terem tido o cuidado de aprovisionar devidamente o curral. Mesmo assim, ficou combinado que lá iriam uma vez por semana, pelo menos.
Por essa altura, fizeram os colonos uma primeira tentativa de comunicação com os seus semelhantes. Foi Spilett quem teve a ideia de aproveitar um albatroz, que Harbert tinha ferido ligeiramente numa pata, como pombo-correio. Sabe-se que os albatrozes têm uma grande envergadura de asas e são muitíssimo resistentes, o que faz deles autênticos vagabundos dos mares capazes de atravessar oceanos... Harbert curou o ferimento da ave e o repórter redigiu uma mensagem sucinta, pedindo a quem a encontrasse que a fizesse chegar à redacção do seu jornal, o New York Herald; em seguida, o papel foi fechado num saquinho de lona e pendurado ao pescoço do albatroz, que foi posto em liberdade.
- Aonde irá ele? - perguntou Pencroff.
- Para a Nova Zelândia - respondeu Harbert.
- Então boa viagem! - gritou o marinheiro, sem dar grande crédito àquela forma de correspondência.
Com o regresso dos frios do Inverno, os colonos recolheram-se em casa uma vez mais, consagrando o tempo a pequenas tarefas. E que conforto e bem-estar não sentiriam eles, quando, instalados no salão bem iluminado e aquecido a carvão a fumar um bom cachimbo, depois de um jantar reconfortante e do café de bagas de sabugueiro, ouviam a tempestade rugir lá fora! No dia 3 de Agosto, porém, aproveitando o céu limpo, resolveram fazer uma expedição ao pântano dos Tadornos.
Efetivamente, naquela época do ano as aves aquáticas abundavam nos pauis e convinha renovar as provisões de patos-bravos, narcejas e galinholas.
Cyrus Smith, invocando um trabalho urgente, acompanhou os amigos só até à margem do rio Mercy; depois que eles atravessaram, levantou a ponte e regressou a casa. Na realidade, o trabalho urgente era um projecto antigo que o engenheiro pretendia pôr em prática, logo que surgisse uma oportunidade de ficar só. Tratava-se de explorar o poço por onde, dantes, as águas do lago se escoavam para o mar.
Por que razão se mostrava Top tão inquieto, sempre que se aproximava da boca do poço? Porque ladrava o cão de uma maneira tão estranha? Teria o poço mais aberturas laterais? Ramificar-se-ia ele até outras partes da ilha? - Eis o que Cyrus Smith pretendia descobrir sem alertar os companheiros.
Descer pelo poço não apresentava dificuldade de maior, uma vez que dispunha da longa escada de corda, agora inútil desde a instalação do elevador... Cyrus foi buscá-la e amarrou-a solidamente cá em cima; depois, armado de revólver e faca de mato, empreendeu a descida, segurando na mão um lampião aceso com que ia alumiando as paredes do poço. O granito era compacto e em parte alguma era visível a abertura de um túnel, sequer um simples buraco! Assim chegou ao nível da água, sem ter descoberto nada de suspeito. O engenheiro subiu pela escada de corda, puxou-a, tapou a boca do poço e voltou pensativo ao salão da Casa de Granito. "Não vi rigorosamente nada, e, no entanto, há ali qualquer coisa!", pensava ele.
Nos dias que se seguiram, Pencroff, ajudado por Harbert, aprontou as velas do futuro barco, aproveitando ainda o resistente tecido de algodão do balão. Com o mês de Setembro, o Inverno chegou ao fim e os trabalhos no exterior puderam ser retomados, com especial entusiasmo no tocante à construção do veleiro.
E tão bem se trabalhou que, a 15 desse mês, o forro interno e a coberta estavam terminados. Para calafetar as pranchas do casco, fez-se estopa com palha de junça, coberta depois com alcatrão a ferver. Enfim, os restantes trabalhos de lastração, colocação do mastro e construção da cabina com dois compartimentos, levaram mais umas semanas, até que, finalmente, o barco ficou pronto.
A 10 de Outubro foi o lançamento ao mar. O barco flutuava em perfeito equilíbrio nas suas linhas de água e tudo indicava que navegaria nas melhores condições. O "capitão" Pencroff assim nomeado pelos companheiros - não cabia em si de contentamento e de orgulho! Agora só faltava baptizar o pequeno veleiro. Foram apreciadas várias propostas, mas a escolha acabou por recair, por unanimidade, no nome Boaventura que era, nada mais nada menos, o nome de baptismo de Pencroff.
O tempo estava soberbo, com mar calmo e uma ligeira brisa de noroeste. Assim sendo, o marinheiro decidiu que se fizesse o passeio de inauguração.
- Vá, toca a embarcar! - gritava ele, entusiasmado.
Pelas dez e meia, estavam todos a bordo, incluindo o cão e uma sacola bem provida de comida, pois tencionavam almoçar no mar.
Os passageiros do Boaventura estavam encantados com a navegação e com a perspectiva da sua ilha vista do mar! Pencroff manobrava habilmente o veleiro em direcção ao sul, sempre perto da costa, e, diante dos olhos dos colonos, iam-se desenrolando as belas paisagens da ilha Lincoln: os areais do litoral, a mata verdejante das florestas e o imponente monte Franklin, a dominar tudo com os seus cumes coroados de neve...
- Como é bonita a nossa ilha! - não se conteve Harbert.
Nisto, o rapaz exclamou:
- Vira a proa, Pencroff! Vira!
- Que há? Um rochedo? - perguntou o marinheiro.
- Não... espera! - disse Harbert. - Não consigo ver bem... Chega um pouco mais...
E dizendo isto o jovem inclinou-se todo borda fora, esticou o braço e apanhou um objecto que flutuava à tona da água.
- Olha, é uma garrafa!
Cyrus Smith pegou-lhe imediatamente, tirou-lhe a rolha e puxou um pedaço de papel, onde se lia: "Náufrago. Ilha Tabor. 153 graus longitude oeste; 37 graus e 11 minutos latitude sul."

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