Capítulo VI

21 2 0
                                    

Durante todo esse tempo, os piratas não deram um único sinal de vida, facto animador não fosse a grande preocupação dos colonos pela sorte de Ayrton. Todavia, a prudência mandava que Harbert tivesse mais um mês, pelo menos, de convalescença, antes de se lançarem em perseguição dos malfeitores.
Em fins de Janeiro, Harbert podia considerar-se totalmente restabelecido dos ferimentos e da grave crise de malária. Os passeios pelo planalto e pela praia e, acima de tudo, os banhos de mar na companhia de Pencroff e Nab muito contribuíram para a sua recuperação não só física como psicológica.

Finalmente, na primeira semana de Fevereiro, o engenheiro Smith decidiu que se realizasse sem mais demora a expedição por toda a ilha. A Casa de Granito ficaria vazia e, uma vez desmontado e escondido o elevador, seria como um castelo completamente inacessível.
Assim, no dia 15 de Fevereiro, retiraram o elevador e a escada de corda e enterraram tudo na areia, no interior das Chaminés. O tempo estava magnífico para a tripla missão que os colonos tinham assumido: dar caça aos bandidos, libertar Ayrton e procurar o benfeitor desconhecido, verdadeiro senhor da ilha.
Cyrus deu ordem de marcha e colocou-se à cabeça da coluna, logo seguido por Spilett e Pencroff; atrás, Nab segurava as rédeas dos onagros que puxavam a carroça carregada de víveres, armas e munições, e onde também seguia Harbert, poupando esforços escusados. O cão Top corria alegremente entre todos.
Chegados à ponte do Mercy, passaram para a margem direita e, deixando a estrada do porto do Balão à esquerda, embrenharam-se pela mata das florestas ocidentais. As árvores, por enquanto dispersas, e o piso firme permitiam o avanço fácil da carroça, embora de tempos a tempos fosse necessário abrir caminho com os machados e as facas de mato.
A

o princípio da tarde, encontraram vestígios da passagem de um pequeno grupo: alguns ramos quebrados, o chão revolvido e cinzas de uma fogueira. Quando a noite chegou, estavam a cerca de quinze quilómetros da Casa de Granito e resolveram acampar junto a um riacho, afluente do Mercy. A vigilância foi organizada com todo o rigor, ficando Harbert dispensado dessa tarefa, apesar dos seus veementes protestos.
No dia seguinte, a marcha prosseguiu com maior lentidão, porque a vegetação, cada vez mais densa, obrigava a sucessivas paragens para se desbravar o caminho. Nesse segundo dia, os colonos avançaram apenas nove quilómetros, mas voltaram a encontrar sinais dos piratas. Desta feita, as pegadas eram bem visíveis e correspondiam a cinco homens, obviamente os cinco malfeitores. Bastante dolorosamente, concluíram que Ayrton não estava com os bandidos e que, portanto, estes já o tinham morto! Patrulhada a parte restante da floresta que, como é sabido, terminava à beira do oceano, na costa ocidental da ilha Lincoln, não foram detectados mais vestígios dos piratas, o que levou Cyrus Smith a comentar:
- Isso não me espanta nada! Quando nadaram para a praia e se puseram em fuga, os celerados atravessaram o pântano dos Tadornos e meteram-se pela floresta adentro... Devem ter feito o mesmo percurso que nós fizemos, a julgar pelos sinais que encontrámos, e esbarraram neste litoral! Depois, perceberam que este não era o local ideal para se esconderem e seguiram para nordeste até que descobriram o curral...
- E quem nos diz que não voltaram para lá? - exclamou! Pencroff. - Partamos imediatamente, senhor Smith Acho, até, que andámos a perder tempo...
- Não, meu amigo - interrompeu o engenheiro. - É bom não esquecer que esta exploração de toda a floresta ocidental tinha, também, a finalidade de saber se este denso arvoredo não esconderia uma habitação. Então, Pencroff, já não se lembra que procuramos igualmente o nosso benfeitor?
- Ah! senhor Cyrus, tem toda a razão! - volveu o marinheiro. - Mas quer saber o que eu penso? Só encontraremos esse cavalheiro se ele quiser!
Essa era, no fundo, a opinião de todos eles. A morada do homem desconhecido só podia ser tão misteriosa quanto ele próprio o era!
A 19 de Fevereiro, o pequeno grupo abandonou o litoral e rumou aos contrafortes do vulcão. O plano do engenheiro era o seguinte: aproximar-se do curral e, caso este estivesse ocupado, tomá-lo pela força, de modo a estabelecer aí a base das operações de busca a desenvolver, posteriormente, na área do monte Franklin. O terreno tornava-se cada vez mais acidentado à medida que se aproximavam do sopé da montanha, o que não só o tornava propício a emboscadas, como dificultava bastante a circulação da carroça. Assim sendo, o avanço foi lento e rodeado das maiores precauções. Finalmente, pelas cinco da tarde, avistaram a paliçada do curral. Gedeão Spilett e Pencroff pretenderam atacar imediatamente, mas Cyrus Smith deteve-os:
- Não, meus amigos! Vamos esperar pela noite. Não permitirei que nenhum de nós se exponha inutilmente.
O engenheiro tinha razão. O curral erguia-se numa clareira e até à cerca era terra absolutamente a descoberto, uma autêntica "terra de ninguém". Assim, deixaram passar três horas. A noite tombou e o vento amainou. O silêncio, de tão profundo, era quase assustador; até o cão estava deitado e quieto, sem qualquer sinal de inquietação. Spilett e Pencroff prepararam-se para avançar e Cyrus deu as últimas instruções:
- Não quero imprudências! Lembrem-se que não se trata ainda de assaltar o curral, mas apenas verificar se está, ou não, ocupado!
Os dois intrépidos colonos avançaram silenciosamente até ao portão da paliçada, que estava fechado.
Do interior, não chegava um único ruído..., nem sequer um rumor das cabras e dos carneiros perturbava a quietude da noite. O repórter ainda pensou em escalar a vedação, mas lembrou-se da recomendação de Cyrus e desistiu. Voltaram, pois, para junto dos amigos, dando-lhes conta da situação.
- Pois bem, tenho agora a certeza de que os piratas não estão no curral! - disse o engenheiro Smith.
- Por mim, só o poderemos saber depois de entrar na cabana - disse Pencroff.
- Vamos lá então! - comandou Cyrus.
- E a carroça? Fica aqui na floresta? - perguntou Nab.
- De maneira nenhuma! Este carro é o nosso "paiol ambulante" e, além disso, pode servir-nos de abrigo se rebentar tiroteio.
Sem hesitar, os colonos avançaram a coberto da escuridão; o espesso tapete de erva abafava o ruído das rodas do carro.
Chegados à paliçada, Nab ficou a segurar os onagros, enquanto os outros se precipitaram para o portão. Um dos batentes estava aberto!
- Com mil trovões! - praguejou, estupefacto, o marinheiro.
- Ainda agora estava fechado e bem fechado!
Logo a seguir, Harbert exclamou, alarmado:
- Há uma luz lá dentro! Com efeito, um ténue clarão escapava-se da janelinha da cabana. Cyrus susteve o ímpeto dos amigos, que já estavam prontos para arrombar a porta, e espreitou. Sobre a mesa, uma candeia acesa; na cama, um homem deitado. O engenheiro não queria acreditar...
- Ayrton! É o Ayrton!
Entraram todos de rompante! Ayrton, surpreso e assustado, virou-se no leito, tentando levantar-se... Os olhos macerados, e o rosto ferido e inchado mostravam que tinha sido torturado; por outro lado, os pulsos e os tornozelos vincados e com marcas sangrentas indicavam que tinha permanecido amarrado durante longo tempo. Cyrus Smith abraçou o amigo, fortemente emocionado, tal como todos os outros
- Vocês? Mas... são vocês?! Cuidado, eles não tardam aí! - exclamou o infeliz, quase sem forças. - Defendam-se! Defendam-se!
Cyrus Smith, tomando conta da situação, deu as ordens necessárias:
- Spilett, você vai buscar Nab. Metam os dois a carroça dentro da cerca e barriquem o portão! Harbert vem comigo e o Pencroff toma já posição de tiro à janela! O engenheiro e o jovem saíram da cabana, ao mesmo tempo que a carroça entrava e o portão era trancado. Nisto, Top, que correra para o fundo da cerca, do lado direito da cabana, desatou a ladrar furiosamente. Acudiram os colonos, à espera do pior... Mas que viram eles? Cinco corpos estendidos na relva... os cadáveres dos piratas! Os cinco sobreviventes do grupo, que há quatro meses desembarcara na ilha Lincoln, estavam mortos.

A Ilha MisteriosaOnde histórias criam vida. Descubra agora