Os colonos, uma vez mais, não duvidaram: a execução dos cadastrados devia-se ao protector desconhecido. Mas como? Que meios extraordinários possuía aquele homem para actuar tão rapidamente e em tão absoluto silêncio? Guardaram para a luz do dia o exame aos cadáveres, esperando obter com isso alguma resposta, e voltaram para junto do companheiro, que desfalecera. Pela madrugada, Ayrton, já mais recomposto, pôde finalmente relatar a odisseia que vivera nos últimos três meses.
Mal tinha chegado ao curral, em Novembro passado, fora logo surpreendido pelos bandidos que, escalando a paliçada, o amarraram e amordaçaram. Em seguida, levaram-no para uma caverna na base do vulcão, onde tinham montado o esconderijo.
Asua morte já havia sido decidida, quando um dos facínoras o reconheceu como antigo companheiro de crimes, tratando-o mesmo por Ben Joyce, nome pelo qual era conhecido na Austrália. Aí, os piratas, que se dispunham a massacrar o honesto colono, resolveram poupar o degredado! Não se tratava, porém, de um acto de solidariedade desinteressada; apenas pretendiam servir-se dele, Ayrton, para enganar os colonos e lhes franquear o acesso à Casa de Granito! Uma vez lá, eliminariam os defensores e tomariam posse da ilha. Mas ele recusara colaborar naquele plano, preferindo a morte a trair os amigos. Começaram, então, as torturas e os espancamentos, sempre amarrado naquele antro escuro.
Os facínoras nunca julgaram prudente ocupar o curral, apenas dele se servindo para aprovisionamento; era o que lá tinham ido fazer dois deles, quando os colonos apareceram, naquele dia em que Harbert foi ferido e Cyrus Smith abateu um deles. Raivosos e cada vez mais impacientes, os piratas intensificaram os maus tratos a Ayrton.
Este esperava a morte a cada instante, até que, chegado ao limite das forças, caiu numa prostração profunda... A partir daí, perdera a noção do tempo e a memória das coisas era muito pouco clara...
De repente, tomado de súbita angústia, Ayrton perguntou:
- Mas, senhor Smith, como é que se explica que eu, estando prisioneiro naquela caverna, tenha vindo parar aqui... à minha cama? E desamarrado?
- E como é que se explica, meu bom Ayrton, que os bandidos estejam mortos aqui dentro da cerca? - respondeu o engenheiro.
- Mortos? Mortos, esses miseráveis?
A excitação de Ayrton sobrepôs-se à fraqueza e levantou-se, ajudado pelos amigos. Lá fora, o dia nascera. Sem demora, encaminharam-se todos para o sítio onde Top tinha encontrado os corpos. O pobre prisioneiro estava atónito! A um sinal do engenheiro, Nab e Pencroff examinaram os cadáveres, mas, estranhamente, não encontraram ferimentos evidentes de bala ou provocados por qualquer outra arma conhecida... Só após uma observação mais minuciosa, é que foram detectados uns pequenos pontos avermelhados, na testa de um, no peito de outro, nas costas deste, no ombro daquele...
- Que arma fulminante poderá ter feito isto? - surpreendeu-se Spilett.
Estavam todos tão espantados quanto o repórter; Smith quebrou o silêncio:
- Foi o justiceiro da ilha! O mesmo que o trouxe para aqui, Ayrton! O benfeitor que faz por nós aquilo que nós não podemos fazer!
- Procuremo-lo, então! - exclamou o marinheiro.
- Sim, havemos de esquadrinhar os contrafortes do monte Franklin sem deixar uma só cova, um só buraco! Ah, companheiros! Se alguma vez a um repórter se deparou caso verdadeiramente emocionante e intrigante, pois foi agora... e a mim! - rematou Gedeão Spilett.
Mas, antes do mais, havia que tratar de Ayrton.
Levaram-no para a cabana e o engenheiro Smith fez-lhe o relato dos acontecimentos e provações por eles vividos. Por fim, ficou decidido que não voltariam à Casa de Granito sem antes levar a cabo a exploração da montanha. O curral estava mais próximo e, além disso, tinham ali mantimentos e tudo o mais que precisassem. Subitamente, Pencroff observou:
- Há ainda outra coisa a fazer... uma travessia!
- Uma viagem? Aonde? - indagou Spilett.
- Sim, temos de ir à ilha Tabor! - respondeu o marinheiro. Temos de ir lá deixar uma mensagem a dizer onde estamos, para o caso do tal iate escocês ir lá buscar o Ayrton... Deus queira que não seja tarde de mais!
- Mas, Pencroff, como é que você pensa fazer essa travessia? - perguntou Ayrton.
- Ora essa! No Boaventura, está visto que...
- Mas, meu amigo - interrompeu Ayrton. - O Boaventura já não existe! Agora me recordo de ter ouvido, num destes últimos dias, os piratas a comentar que tinham espatifado o barco de encontro aos rochedos...
- Ai o meu Boaventura! Ah, os canalhas, que o inferno os trague! Os miseráveis... - O marinheiro estava consternado e Harbert bem tentou consolá-lo, mas em vão.
A destruição do pequeno veleiro era, na verdade, uma perda lamentável para os colonos. No entanto, impunha-se calma e bom senso, ficando decidido que outro barco se faria logo que possível, aproveitando-se o material e equipamento do brigue afundado. Em seguida, ultimados os preparativos para as buscas, puseram-se em marcha.
A base da montanha, ramificada em múltiplos contrafortes, formava como que um intrincado labirinto de vales cortados por linhas de água. Era justamente ali, no fundo daquelas estreitas gargantas, que o engenheiro Smith pensava que deviam intensificar as explorações.
Assim, começaram pelo vale que se abria para sul e por onde corria o ribeiro que se despenhava no litoral oeste. Foi lá, junto à nascente do curso de água, que Ayrton lhes mostrou a caverna onde estivera prisioneiro. Mas não era esta a única, conforme verificaram! Muitas mais havia, com galerias maiores ou menores, mas todas soturnas e assustadoras... Os colonos não deixaram uma só por revistar, de archotes de resina em punho, mas em lado algum viram sinais de presença humana. Por fim, entraram numa que avançava mais pelo interior da montanha e foram surpreendidos por um ruído surdo, acompanhado de uma ligeira vibração da rocha que pisavam.
- Afinal, parece que o vulcão não está totalmente extinto... - observou Spilett, que ia na frente com Cyrus.
- É bem possível que posteriormente à nossa visita à cratera tenha havido uma alteração nas camadas inferiores - admitiu o engenheiro. - Um vulcão, por mais extinto que pareça, pode sempre reentrar em actividade.
- Mas uma erupção do monte Franklin não acarretaria um sério perigo para a nossa ilha? - inquietou-se Spilett.
- Não me parece - respondeu, calmamente, Cyrus. - A cratera funciona como uma válvula de segurança e escoaria o excesso de vapores e de lava... e esta escorreria pelos sítios habituais.
- A não ser que a lava abrisse novos caminhos em direcção à parte fértil da ilha! - insistiu o repórter.
- Ora, meu amigo, e por que não utilizaria as vias já naturalmente traçadas? - objectou o engenheiro.
Spilett mantinha o cepticismo:
- Os vulcões são caprichosos...
- Repare, Spilett, como a inclinação do monte favorece a expansão das matérias incandescentes para os vales que agora exploramos. Para que isso se invertesse, seria necessário que um fortíssimo tremor de terra mudasse o centro de gravidade da montanha. De resto, ainda não vimos nenhum sinal de fumo a sair da cratera e a indicar uma erupção próxima! Porém, é de admitir que, ao longo dos tempos, se tenham acumulado rochas de lava e de cinzas arrefecidas que podem obstruir a tal válvula de que há pouco falei... Mas acredite, meu caro Spilett, ao primeiro abalo sério essa tampa rebentaria e nem a ilha, que é a caldeira, nem o vulcão, que é a chaminé, hão-de explodir com a pressão dos gases... Bom, de qualquer modo, o melhor é que não ocorra nenhuma erupção!
Os dias seguintes, até 25 de Fevereiro, foram consagrados à exploração da região setentrional da ilha. Os colonos inspecionaram todas as rochas e fendas que encontraram pelo caminho e voltaram a subir aos cumes sobrepostos do monte Franklin. Embora no fundo da cratera os mesmos rugidos surdos fossem perfeitamente audíveis, não havia o menor escoamento de fumos ou vapores, nem tão-pouco aquecimento anormal das paredes de rocha. A verdade é que, nem ali, nem em parte alguma, encontraram qualquer rasto daquele que tão ansiosamente procuravam! Todos comungavam da mesma frustração ao perceber que se impunha o regresso. Era evidente que a misteriosa criatura não se acoitava na ilha! Smith, Spilett e o jovem Harbert, homens cultos e de espírito científico treinado, viam-se obrigados a apelar a todas as reservas de lucidez; Ayrton, Pencroff e Nab, menos rigorosos, tendiam para interpretações fantasiosas e sobrenaturais. Foi assim, neste estado de espírito, que os nossos amigos voltaram para a Casa de Granito, e precisamente um mês depois, a 25 de Março, celebravam o terceiro aniversário da sua chegada à ilha Lincoln!
Três anos tinham passado, três anos de penosos trabalhos, de sofrimentos e perigos partilhados e enfrentados.
Os colonos tinham razões para sentir orgulho por tudo o que haviam superado e conseguido e que, no fim, os fortalecera de corpo e de espírito. Todavia, a recordação da pátria era constante e, por vezes, não conseguiam impedir momentos de nostalgia e abatimento. Agora, perdido o Boaventura, precisavam de dar início à construção do barco que os havia de levar à ilha Tabor; seriam, pelo menos, outros seis meses de trabalho, donde a travessia só seria empreendida na Primavera seguinte, isto é, em Setembro ou Outubro. Dispunham, desta vez, de bom material e equipamento de navegação perfeitamente aproveitável, recuperados do navio dos piratas, para além da belíssima madeira da floresta ocidental.
Por outro lado, infelizmente também tinham de admitir que o iate escocês já tivesse arribado à ilhota e, sem encontrar Ayrton, tivesse partido para não mais voltar... Na mente de Cyrus Smith germinava um plano ousado: e porque não construir, em vez de um veleiro pequeno destinado a viagens curtas, um barco maior, entre duzentas e trezentas toneladas? Porque não ir mais além? Talvez até alguma ilha da Polinésia ou mesmo à Nova Zelândia? Esta ideia encheu de entusiasmo os companheiros! - Trate o senhor do projecto, que gente para trabalhar não falta! - afirmou o sempre disponível Pencroff, exibindo os braços musculosos. Estavam todos conscientes de que seria uma tarefa gigantesca, mas a confiança que tinham neles próprios e nos outros era ilimitada. Deitaram, pois, mãos à obra. O engenheiro traçava os planos da embarcação; os restantes procediam ao abate das árvores, que eram transportadas na carroça até junto das Chaminés, onde novamente foi montado o estaleiro. Enfim, o trabalho da colónia foi tão rigorosamente organizado e tão grande o empenhamento de cada um, que nem as sementeiras de Abril deixaram de se fazer e, inclusivamente, até a capoeira foi reconstruída! O curral também não foi abandonado; todos os dias, lá se deslocava um dos colonos a tratar dos animais, trazendo leite na volta e aproveitando para caçar. As idas ao curral foram igualmente aproveitadas para reparação do fio do telégrafo, restabelecendo a ligação com a Casa de Granito. Em meados de Abril, já a quilha do novo barco se alongava no estaleiro, fixada em cada uma das extremidades às rodas da proa e da popa, igualmente prontas. Por essa altura, as condições atmosféricas pioraram. Os homens martelavam e serravam ensopados até aos ossos, batidos pela forte ventania que soprava de leste com violência ciclónica. A meio de Junho, a chuva parou e veio um frio intenso que endureceu as fibras da madeira a ponto de esta parecer ferro! A obra teve de ser interrompida. Os três meses de invernia - Junho, Julho e Agosto - foram rigorosos como sempre, com uma temperatura média de 13 graus abaixo de zero. Contudo, a colónia da ilha Lincoln atingira o seu ponto mais alto de prosperidade, fruto dos três anos de árduo labor, acrescida pelas riquezas do caixote que dera à costa e do brigue afundado. As despensas e arrecadações estavam repletas, não faltava roupa quente e não era necessário poupar lenha, pelo que as lareiras dos vários compartimentos crepitavam permanentemente. Nos momentos de lazer, agora mais frequentes, Cyrus Smith não podia deixar de pensar no poderoso "senhor da ilha", o benfeitor que não tinham logrado encontrar. Ficaria este enigma sem solução?
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A Ilha Misteriosa
SonstigesSinopse: A história começa nos Estados Unidos da América, durante a guerra civil, durante o cerco de Richmond, Virginia, a capital dos Estados Confederados da América (Sul). Cinco americanos do norte, prisioneiros, decidem fugir utilizando um meio p...