9 Capítulo

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Ela já fez a mesma pergunta três vezes.
- Você pode estar doente - é tudo o que consigo dizer.
- Não estou doente. Só estou quente. Não costumo dormir vestida.
Sinto um frio na barriga. Uma humilhação inexplicável queima minha carne. Não sei para onde olhar.
Uma respiração profunda.
- Fui uma estúpida ontem. Tratei você como lixo e eu sinto muito.
Não devia ter feito aquilo.
Ouso deparar com seu olhar.
Seus olhos são o tom perfeito de castanhos nítidos e decididos. Sua mandíbula é definida e suas feições
são esculpidas em uma expressão cuidadosa. Ela pensou nisso a noite
toda.
- Está tudo bem.
- Então por que você não me diz o seu nome? - Ela se inclina para a frente e eu congelo.
Eu me derreto.
Eu evaporo.
- Lauren - sussurro. - Meu nome é Lauren.
Seus lábios amolecem em um sorriso que me quebra a espinha em
pedaços. Ela repete meu nome como se a palavra a divertisse.
Em dezessete anos, ninguém jamais disse meu nome desse jeito.

Não sei quando isso começou.
Não sei por que isso começou.
Não sei nada de nada a não ser dos gritos.
Minha mãe gritando quando ela percebeu que não poderia mais me tocar. Meu pai gritando quando ele percebeu o que eu fizera com minha mãe. Meus pais gritando quando me trancaram em meu quarto e me disseram que eu deveria ser grata. Por sua comida. Pelo tratamento humano dedicado a esta coisa que não era possível que fosse filha deles. Pelo parâmetro que eles usaram para determinar a distância que eu devia
ficar.
Arruinei a vida deles - é o que me diziam.
Roubei sua felicidade. Destruí para sempre a esperança de minha mãe de ter filhos novamente.
Eu não conseguia enxergar o que tinha feito? - é o que eles me perguntavam.
Eu não conseguia enxergar que tinha estragado tudo?
Tentei tanto consertar o que eu tinha estragado. Tentei todo santo dia ser o que eles queriam. Tentei o tempo todo ser melhor, mas de fato nunca soube como.
Somente agora sei que os cientistas estão errados.
O mundo é achatado.
Sei por que fui atirada da margem do planeta e há dezessete anos ando tentando me segurar Há dezessete anos tenho tentado escalar de volta, mas é quase impossível
superar a gravidade quando ninguém está disposto a lhe dar a mão.
Quando ninguém quer correr o risco de tocar em você.

Hoje está nevando.
O concreto está gelado e mais rígido que o normal, mas eu prefiro estas temperaturas congelantes à umidade sufocante dos dias de verão. O verão é como um fogão lento capaz de fazer ferver todas as coisas do mundo um grau de cada vez. Ele é a promessa de um milhão de adjetivos felizes apenas para fazer emanar fedor e esgoto para seu nariz durante o jantar. Odeio o calor e o suor pegajoso nas costas. Odeio o fastio indiferente de um Sol preocupado demais consigo mesmo para se dar conta das infinitas horas que passamos em sua presença. O Sol é uma coisa arrogante, sempre vendo o mundo pelas costas quando se cansa de nós.
A Lua é uma companheira correta.
Ela nunca se vai. Está sempre lá, observando, constante,
reconhecendo-nos em nossos momentos de luz e escuridão, em constante transformação, assim como nós. Todos os dias uma versão diferente dela mesma. Às vezes fraca e lívida, noutras forte e cheia de luz. A Lua compreende o significado de ser humano.
Inconstante. Solitária. Esburacada de imperfeições. Estendo a mão para pegar um floco de neve e minha mão se fecha no ar gelado. Vazia.
Quero que esta mão ligada a meu punho atravesse direto a janela.
Apenas para sentir algo.
Apenas para sentir-me humana.
- Que horas são?
Meus olhos tremulam por um momento. Sua voz me puxa de volta para um mundo que continuo tentando esquecer.
- Eu não sei - digo-lhe. Não faço ideia de que horas são. Não faço
ideia de qual é o dia da semana, em que mês estamos, ou mesmo se existe
uma estação específica em que devíamos estar.
Não temos mais estações propriamente ditas.
Os animais estão morrendo, os pássaros não voam, as colheitas são
difíceis de obter, as flores quase não existem. O tempo não é confiável.
Às vezes os dias de inverno atingem 33 graus. Às vezes neva por razão
nenhuma. Não conseguimos mais produzir alimento suficiente, não
conseguimos mais manter vegetação suficiente para os animais, e não
conseguimos alimentar as pessoas com aquilo de que elas precisam.
Nossa população estava morrendo a uma taxa alarmante antes de O
Restabelecimento tomar o comando com a promessa de que tinham uma
solução. Os animais estavam tão desesperados por comida que estavam dispostos a comer qualquer coisa, e as pessoas estavam tão desesperadas por comida que estavam dispostas a comer animais envenenados.
Estávamos nos matando na tentativa de permanecermos vivos. O tempo,
as plantas e a sobrevivência humana são indissociáveis. Os elementos
naturais estavam em guerra uns com os outros porque abusávamos de
tudo. Abusávamos de nossa atmosfera. Abusávamos de nossos animais.
Abusávamos de nosso semelhante.
O Restabelecimento prometeu que consertaria as coisas. No entanto,
mesmo que a saúde humana tenha encontrado um pouquinho de alívio
sob o novo regime, no fim das contas morreram mais pessoas de uma arma carregada que de um estômago vazio. E está ficando pior.

Estilhaça-me (camren)Onde histórias criam vida. Descubra agora