11 Capítulo

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- Por que você tanto olha para fora?
Não me importo com suas perguntas, não mesmo. Só é estranho ter
alguém com quem conversar. É estranho ter de exercer energia para
mover meus lábios à formação de palavras necessárias para explicar
minhas ações. Ninguém se preocupou por muito tempo. Ninguém me
observou o bastante para se perguntar por que encaro o lado de fora da janela. Ninguém jamais me tratou como igual. Mas ela não sabe que sou um monstro que isso é meu segredo. Me pergunto por quanto tempo isso vai durar antes de ela fugir para salvar a própria vida.
Esqueci de responder e ela ainda está me estudando.
Escondo uma mecha de cabelo atrás da orelha apenas para mudar as
ideias.
- Por que você olha tanto?
Seus olhos são dois microscópios analisando as células de minha
existência. Aplicados, curiosos.
- Imaginava que a única razão para que me trancassem com uma
garota era porque você estava doida. Pensei que estavam tentando me
torturar me botando no mesmo espaço de uma psicopata. Pensei que
você fosse minha punição.
- É por isso que roubou minha cama. - Para exercer poder. Para
demarcar território. Para adiantar-se à batalha.
Ela deixa os olhos caírem. Aperta e desaperta as mãos antes de
esfregar a nuca.
- Por que você me ajudou? Como sabia que eu não ia machucá-la?
Conto meus dedos para ter certeza de que eles ainda estão lá.
- Nada disso.
- Você não me ajudou ou você não sabia se eu a machucaria?
- Camila. - Meus lábios curvam-se para dar forma a seu nome.
Estou surpresa por descobrir o quanto amo a maneira fácil e familiar com que o som se desenrola de minha língua.
Ela está sentada quase tão imóvel quanto eu. Seus olhos concentram
um novo tipo de emoção que não consigo adivinhar.
- Sim?
- Como é? - pergunto, cada palavra menos audível que a anterior.
- Lá fora? No mundo real. É pior?
Uma dor desfigura as feições bem definidas de seu rosto. Ela leva
algumas batidas de coração para responder. Ela olha para fora da janela.
- Honestamente? Não tenho certeza se é melhor estar aqui dentro ou lá fora.
Acompanho seus olhos até a vidraça que nos separa da realidade e
espero seus lábios cindirem; espero para escutá-la falar. E então tento
prestar atenção enquanto suas palavras se movem no nevoeiro de minha cabeça, nublando meus sentidos, obscurecendo meus olhos, turvando minha concentração.
- Você sabia que era um movimento internacional? -Camila me
pergunta.
- Não, não sabia - digo-lhe. Não lhe conto que fui arrastada de
minha casa há três anos. Não lhe conto que fui arrastada exatamente sete anos depois que O Restabelecimento começou a pregar e quatro meses
depois que tomaram o controle de tudo. Não lhe conto o quão pouco sei
de nosso mundo novo.
Camila diz que O Restabelecimento tinha sua participação em cada
país, pronto para o momento de alçar seus líderes a uma posição de
controle. Ela diz que a terra habitável que sobrou no mundo foi dividida
em 3.333 setores, cujo controle é executado por uma pessoa de poder
diferente em cada área.
- Sabia que eles nos enganaram? - Camila me pergunta.
- Sabia que O Restabelecimento disse que alguém tinha de assumir o controle, que alguém tinha de salvar a sociedade, que alguém tinha de
restaurar a paz? Sabia que disseram que matar todas as vozes de oposição
era o único modo de encontrar a paz?
- Sabia disso? - É o que Camila me pergunta.
E aqui é onde eu aceno. Aqui é onde eu digo sim.
Aqui é a parte de que me lembro. A raiva. A desordem. A fúria.
Meus olhos se fecham em um esforço subconsciente a fim de
bloquear as memórias ruins, mas o esforço sai pela culatra. Protestos.
Comícios. Gritos por sobrevivência. Vejo mulheres e crianças morrendo
de fome, casas destruídas e enterradas em cascalhos, o campo, uma
paisagem incendiada, seu único fruto, a carne apodrecida das vítimas.
Vejo morte morte morte e vermelho e vinho de Borgonha e marrom e o
tom mais profundo do batom favorito de mãe todo borrado na terra.
Tanto de tudo que estivesse morto.
O Restabelecimento esforça-se para manter seu domínio sobre o
povo, Camila diz. Ela diz que O Restabelecimento se esforça na guerra contra os rebeldes que não se sujeitam a este novo regime. O
Restabelecimento esforça-se para firmar-se como uma nova forma de
governo em todas as sociedades internacionais.
E então me pergunto o que teria acontecido com as pessoas que
costumava ver no meu dia a dia. O que foram de suas casas, seus pais,
seus filhos. Pergunto quantos deles foram sepultados no solo.
Quantos deles foram assassinados.
- Estão destruindo tudo - diz Camila, e sua voz subitamente soa
solene no silêncio. - Todos os livros, todos os artefatos, todos os
vestígios de história humana. Estão dizendo que é o único jeito de
consertar as coisas. Dizem que precisamos começar do zero. Dizem que não podemos cometer os mesmos erros das gerações passadas.
Duas pancadas na porta e nós dois estamos de pé, trazidos bruscamente de volta a este mundo desolador.
Camila eleva uma sobrancelha para mim.
- Café da manhã?
- Espere três minutos - recordo-a. Estamos indo tão bem em
mascarar a fome, até que as pancadas na porta vêm e tolhem-nos a dignidade.
Eles nos deixam famintos de propósito
- Sim. - Seus lábios esboçam um suave sorriso. - Não quero me
queimar. - O ar se desloca conforme ela se aproxima.
Sou uma estátua.
- Ainda não compreendo - diz ela, bastante serena. - Por que
você está aqui?
- Por que você faz tantas perguntas?
Ela deixa pouco espaço entre nós e eu estou a alguns centímetros da
combustão instantânea.
- Seus olhos são tão profundos. - Ela inclina a cabeça. - Tão calmos. Gostaria de saber em que você está pensando.
- Você não deve. - Minha voz vacila. - Você nem me conhece.
Ela ri e o gesto concede vida à luz em seus olhos.
- Não conheço você.
-Não.
Ela balança a cabeça. Senta-se na cama.
- Certo. Claro que não.
-O quê?
- Você está certa. - Ela toma fôlego. - Talvez eu seja louca.
Dou dois passos para trás.
- Talvez você seja.
Ela está sorrindo novamente e eu gostaria de tirar uma foto. Gostaria
de fitar-lhe a curva dos lábios pelo resto de minha vida.
- Eu não sou, você sabe.
- Mas você não me conta por que está aqui - desafio.
- E nem você.


Caio de joelhos e puxo a bandeja através da fenda. Algo não


identificável está soltando vapor em dois copos de lata. Camila ajoelha-se


no chão, diante de mim.


- Café da manhã - digo, enquanto lhe empurro sua porção.

Estilhaça-me (camren)Onde histórias criam vida. Descubra agora