capítulo 34

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A vida de um professor universitário, em especial a de um que more num campus pequeno, é muito restrita. Ele vive no mundo surreal do assim chamado alto saber. Sente-se confortável ali. Tem muito poucas razões para abandoná-lo. Eu tinha carro, mas o dirigia não mais que uma vez por semana - se tanto. ia caminhando para todas as minhas aulas. Andava até a cidade de Lanford para ir a lojas, lugares favoritos, cinemas, restaurantes, o que fosse. Era um mundo isolado não só para os estudantes, mas também para os que fazem desses locais seu meio de vida.

A pessoa tende a viver no globo de neve da academia de artes liberais. Isso alterava o estado de espírito, claro, mas num nível meramente físico. Eu tinha feito mais viagens naquela semana em que li o obituário de Stanley Lucas do que nos últimos seis anos. Pode ser exagero, mas nem tanto. Aquelas altercações violentas, combinadas com a imobilidade de horas sentado em carros e aviões, estavam sugando minha energia. O nível de adrenalina era alto, claro, mas aprendera da forma mais difícil que esse recurso tinha limitações. Quando saí da Rota 202 e comecei a subir na direção da área rural, ao longo da fronteira entre Massachusetts e New Hampshire, minhas costas começaram a doer. Parei então num quiosque chamado Lee para esticar um pouco as pernas. Uma placa na frente fazia promoção do sanduíche de hadoque frito, mas preferi um cachorro-quente com batata frita e Coca. Estava tudo maravilhoso e, por um segundo, dirigindo-me àquela cabana isolada, pensei sobre o conceito de última refeição. Não era um estado de espírito muito saudável. Comi com voracidade. Paguei, pedi mais um e voltei para o carro. Sentia-me estranhamente renovado. Passei pela floresta Otter River State. Encontrava-me a apenas cerca de dez minutos da casa de Malcolm Hume. Não sabia o número de seu celular - nem se ele tinha um -, mas de qualquer forma não ligaria. A ideia era aparecer de repente e ver qual era. Não queria dar ao professor tempo para se preparar. Precisava de respostas e desconfiava que meu antigo mentor as tivesse.

Não era necessário ter o conhecimento de tudo. Já sabia o suficiente. Queria só ter certeza de que louis estava em segurança e que ele soubesse que havia umas pessoas muito más atrás dele. Se possível, ver se também poderia sumir e ficar com ele. Sim, já tinha ouvido falar das regras, dos juramentos da Novo Começo e daquilo tudo, mas o coração não conhece regras nem juramentos.
Devia haver um jeito.

Quase não vejo a pequena placa em que estava escrito Attal Drive. Dobrei à esquerda, peguei uma estrada de terra e comecei a subir a montanha. Quando cheguei no alto, vi o lago Canet lá embaixo, ainda como um espelho. As pessoas usam a palavra imaculado, mas ela atingiu um
sentido novo de pureza quando vi a água. Parei o carro e saltei. O ar tinha esse tipo de frescor que faz a pessoa saber que mesmo uma inspiração apenas pode alimentar os pulmões. O silêncio e o sossego eram quase devastadores. Sabia que, se soltasse um grito, ele permaneceria ecoando e jamais se dissiparia por completo. Ficaria morando naqueles bosques, diminuindo de intensidade, sem nunca morrer, e se juntaria com outros sons passados, ainda reverberando naquele zum-zum baixinho que era a vida ao ar livre.

Procurei uma casa em volta do lago. Não tinha nenhuma. Vi só dois atracadouros. Havia canoas amarradas a ambos. Nada mais. Voltei ao carro e dirigi para a esquerda. A estrada de terra não era boa ali. O carro sacolejava no terreno irregular, pondo à prova os amortecedores, que não funcionavam bem. Fiquei feliz por ter feito seguro na locadora, o que era uma coisa bizarra para se pensar numa hora daquelas, mas a mente vai por onde quer. Lembrei que o professor Hume tinha uma caminhonete com tração nas quatro rodas, o que não era padrão para um motorista vindo das artes liberais. Agora eu sabia por quê. Mais acima, vi duas caminhonetes estacionadas lado a lado. Parei o carro atrás delas e saltei. Foi impossível não notar várias marcas de pneus na terra. Ou Malcolm havia ido e vindo repetidas vezes ou tinha companhia. Não sabia o que pensar daquilo. Quando olhei para o alto do morro e vi o pequeno chalé de janelas escuras, senti os olhos marejarem.

seis anos depois ➡ l.s. (Finalizada)Onde histórias criam vida. Descubra agora