8 - Um corpo na noite

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O deserto se abria enorme à frente de seus olhos pequenos e o cansaço já dava sinais de superar todos os outros sintomas de mais um dia de viagem, mas ele queria avançar mais um pouco, na esperança de achar um refúgio para se proteger do vento que iniciava sua canção. Foram horas e horas de solidão, desde a última vez que falou com alguém e para não se sentir abandonado, assim como fizera inúmeras vezes antes, colocou-se a cantar uma música que ouvira certa vez saindo da boca de sua mãe, numa voz suave que tinha. A letra falava sobre as vitórias de um povo oprimido que, como muitas vezes ainda aconteceria, conquistou a liberdade e agora marchava de volta para o lar.

"Lar? O que isto significava na verdade?" – perguntou-se enquanto ao longe avistou destroços de madeira que certamente serviriam como proteção para a noite que chegava. Não tinha ideia se poderia dizer que alguma vez tivera um lar de verdade. "Seu lar" - pensou – "era um conjunto de imagens que continham desertos, mares, campos e vilas acompanhadas do mais puro isolamento." A questão do total isolamento estava para mudar, mas ele ainda não sabia, pouco imaginava o que lhe aguardava além das montanhas do norte.

Mirando os destroços como referência, agora que noite caia tão rapidamente, respirou fundo e prosseguiu reunindo forças que já não tinha e ao perceber que estava próximo do seu objetivo, a escuridão já era quase completa.

"Mais alguns metros" - disse alto – "Mais alguns poucos metros e o descanso merecid..."

Caiu!

Como não estava preparado, pois andando com a cabeça levantada, acabou mesmo não tendo reflexo o suficiente para proteger o rosto a tempo e acabou mergulhando de cabeça na areia, engolindo uma porção de pequeninos grãos, e uma dor insuportável lha atingiu a lateral das costas, onde um recente ferimento ainda pulsava. Se não fosse a necessidade imediata de acender uma fogueira para assar algo e se aquecer, teria dormido bem onde estava. Levantou-se e chutou a coisa que ele achava ser o responsável por sua queda com todas as poucas forças que lhe restavam.

"Uff!" - Respondeu a "coisa" ao golpe, que respirava e se arrastava lentamente, mas o viajante ignorou o fato e continuou com suas importantes tarefas.

Após o fogo começar a iluminar um bom pedaço à volta e um cheiro de carne queimada se espalhar junto à fumaça, a "coisa" rastejou mais para próximo da luz e pediu água. O viajante, cansado, atirou na direção do ser um pote pequeno de louça fechado por uma rolha e depois que mastigou uns bons pedaços de carne, acabou dormindo, antes mesmo de ouvir mais um resmungo do ser em agradecimento. Cláudio também não o viu se arrastando para bem próximo da fogueira e muito menos viu ele agarrando um enorme naco de carne que ainda estava regado de sangue. Se o tivesse ouvido comer lembraria na hora de um animal matando a fome e por certo poderia ter se assustado, mas ao contrário disso acabou dormindo muito tranquilamente e não teve pesadelos.

Nesses últimos dias uma lembrança ruim insistia em persegui-lo por todas as noites antes de dormir. Era Deiron que via em seus pensamentos lembrando-o sempre do seu arrependimento por ter tentado fazê-lo de bobo. No fim quem fora feito de bobo tinha sido ele mesmo.

Deiron, desconfiado de Cláudio, tratou de encarregar Ranfug de lhe prestar um favor, caso fosse necessário. Esse favor, que ele acabou prestando, consistia em ajudar Cláudio em alguma das tarefas que ele não conseguisse realizar, portanto Ranfug só teve o trabalho de ficar no caminho do loiro e quando este retornou a Hati, o procurou com uma oferta tentadora e acabou tendo um bom lucro com o episódio.

O capitão da guarda havia sido informado por seus homens com antecedência da falha de Cláudio em conseguir a adaga e alertou Ranfug para o fato, que fez brilhantemente o seu papel. Então no dia que o loiro se apresentou com a falsa arma, ele já sabia exatamente o que fazer. E era a lembrança do que aconteceu que vivia perseguindo Cláudio por tantos dias sem fim, de como fora tolo, logo ele que se achava tão esperto. Não conseguiu falar com Ranfug antes de ser expulso do castelo, mas bem que queria lhe dar uns safanões e lhe perguntar porque não o alertara quando ele já estava decidido a desistir e simplesmente falar a verdade para o capitão.

A adaga se partiu quando Deiron tentou enterrá-la nas costas do loiro, como ele bem sabia que aconteceria, devido ao material especial com que fora confeccionada, provocando um pequeno corte e rasgando sua veste, mas a expressão de pavor no rosto do loiro não fora falsa e achou mesmo que havia sido ferido gravemente, demorando alguns segundos para perceber que Deiron sorria.

"É! Realmente eu estava enganado! Acreditei que você teria se esforçado mais para conseguir algo que lhe parecia tão importante. E em vez disso me traiu e veio caçoar de mim dentro da fortaleza do rei. Não é digno de que lhe treine para nada. Se ao menos tivesse usado de sinceridade, provavelmente eu lhe teria indicado outro caminho, poderia ter lhe dado alegremente outra chance, mas provou ter o caráter dos hipócritas e o melhor que faz agora é se retirar e nunca mais aparecer em Hati, ou diante dos meus olhos, que abominam gente fraca e covarde."

Fora tudo que escutara de Deiron e o suficiente para se sentir envergonhado de tal forma que não esperara uma noite sequer para partir sem um rumo certo. Simplesmente girara o Gomvsu na mão e para o lado onde a luz ficou mais brilhante seguiu. Chegou a pensar dias depois em retornar e mostrar todo o arrependimento que sentia, mas depois de refletir sobre o assunto chegou à conclusão de que não estava se sentindo tão arrependido assim, usara de um artifício muitas vezes utilizado por ele antes e que fora crucial para mantê-lo vivo, então decidiu aceitar de uma vez por todas que simplesmente ele era assim e pronto.

Mas refletindo bem naquele início de noite – pois os pensamentos o levavam sempre àquele momento e ficava imaginando se não haveria outro motivo para que tal cena ficasse sendo reprisada em sua mente – não tinha certeza agora se o que mais doía era o ferimento causado pela falsa adaga, que ainda não fechara totalmente, ou um outro tipo de hematoma invisível que insistia em ficar pulsando em sua mente pela vergonha de ter sido escoltado imediatamente para fora do castelo, como um vil criminoso, e ainda com as últimas palavras do capitão ecoando em sua mente: "Levem esse imprestável daqui, nunca mais quero ver o seu rosto aqui dentro das muralhas do castelo de Hati e se o ver, ele e quem o deixar entrar irão direto para as masmorras e apodrecerão junto aos ratos que por lá fazem moradia..."

E houve uma última frase, que mesmo já estando no corredor entre dois soldados azuis, ainda o incomodava, e que aparentemente teria sido dita pelo capitão para ele mesmo: "Guerreiro? Onde é que eu estava com a cabeça!" Essa frase final ficava indo e voltando repetidas vezes, até que acabava dormindo e não pensando mais no assunto durante todo o dia seguinte e à noite a cena se repetia.

No fundo do seu íntimo agora ele sabia por que Ranfug, que se demonstrara tão amigo, não o contara do seu acordo com o capitão, pois ele merecia uma lição e pensando melhor, o explorador não o obrigou a nada, todas as consequências foram causadas por ele mesmo, existia um roteiro improvisado a seguir e o loiro o seguiu, sem questionar, e se tivesse que viver com essa culpa por muito tempo, que assim fosse. Ele jamais poderia imaginar que um simples tropeço o libertaria daquele ciclo de pensamentos diários que surgiam ao escurecer.

A Saga de Kedl - No Caminho Escuro (Em Andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora