2 - A passagem para a escuridão

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Durante a noite Kedl acordou sobressaltada, com a respiração acelerada. Seu irmão mais jovem dormia serenamente em um tapete de peles estendido próximo ao seu.

Invejou-o.

Não gostava da escuridão que tomava conta do ambiente em que dormiam e demorou algum tempo para acostumar seus olhos. Foi quando seus pensamentos vagaram através do ar, rompendo as paredes de madeira, indo ao encontro de alguém que vagava sorrateiramente pela aldeia, num horário inapropriado. Ela sabia quem era e enchendo-se de coragem, vestiu-se depressa com um manto grosso e com cautela deixou a casa, não sem antes ir ver se os pais repousavam, aproveitando para se despedir com um pedido de desculpas em forma de sussurro.

Um vento gelado cortante circulava por todo o canto, gritando para que ela voltasse. Mas diga para uma criança que ela não deve fazer algo e aí é que está a graça: ela faz o contrário! Parece até uma regra que atinge todas as sociedades conhecidas, diga-se de passagem.

Começou a vasculhar sempre tendo o cuidado de permanecer oculta nas sombras e o resultado foi negativo. Nada, não havia ninguém à vista. Será que se enganara? Tinha certeza que não, não se erra em certas coisas. Fechando os olhos fez com que sua mente buscasse uma pista e refez o caminho percorrido anteriormente por alguém que não gostaria de ser encontrado. O que viu foram imagens passando rápido por alguns lugares indo terminar num determinado ponto da cerca feita de madeira. Seguiu para esse ponto e deteve-se por um momento, entrando novamente em meditação. Algumas palavras saíram de sua boca, formando um encantamento simples.

"Abra-se portal!"

Tudo ao seu redor se tornou escuro e uma passagem se revelou à sua frente, onde antes deveria existir a cerca. Sem pensar duas vezes seguiu pela passagem que acabou levando-a a um longo corredor, enfeitado com estátuas de aparência viva, cada qual num pedestal diferente e em vários tamanhos, como se o equilíbrio visual ali não fosse necessário. Estas estátuas representavam seres similares aos homens onde a beleza não era uma das qualidades. A maior delas, no entanto, não tinha uma definição exata parecendo que um dos seres fizera uma metamorfose até a metade quando estava para se tornar um tipo de monstro ou o contrário disto.

Kedl parou em frente desta estátua em metamorfose e não precisou nem de um segundo de meditação para continuar seu caminho, pois agora as palavras brotavam fáceis em sua mente. Pensou simplesmente na palavra Revele com os olhos fixos na estátua mais feia e esta começou a se modificar, terminando a transformação. Primeiro a parte que faltava para se tornar um monstro se completou para logo depois reduzir de tamanho, revelando a imagem de um homem de aparência mais velha que os das demais estátuas, segurando um bastão alongado para se apoiar. Novamente depois desta rápida mudança, tudo se tornou escuro e uma nova passagem se abriu e ela seguiu por ela, chegando num novo corredor aparentemente mais longo que o anterior e no seu final dava para perceber a presença de luz.

Kedl teve desejo de correr, mas conteve-se. Se ainda não tinha chamado a atenção de quem perseguia, queria poder ficar mais um tempo somente observando e retornar quando se sentisse em perigo, apesar de achar que a volta seria por um caminho totalmente diferente.

Agora a poucos metros do fim do corredor, a luz no seu final nada revelava e se viu obrigada a entrar nessa nova área caso quisesse descobrir qualquer novidade e foi o que fez. A intensidade da luz que chegou aos seus olhos nesse novo aposento era tanta que por algum tempo realmente nada viu, mas foi vista. Teve tempo de acostumar seus olhos com a claridade que parecia vir de uma estrela presa ali dentro antes de um obstáculo jogar-lhe uma sombra no rosto.

"Ora, você!" – começou a dizer o obstáculo.

Ela conseguiu até ver as letras se juntando na mente do mestre, formando palavras que ela não compreendia, percebendo então o fato de que não poderia se defender de qualquer que fosse o efeito daquela invocação que estava prestes a ser feita. Conseguiu entender a frase inteira momentos antes de cada palavra ser pensada para posteriormente ser dita. Na verdade chegou a imaginar qual seria o efeito se a dissesse antes do mestre, o que por um lado teria sido bom para ela, mas certamente poderia ser catastrófico para o planeta e quando ouviu o encantamento soando como um trovão teve certeza que seu destino se encaminhava na direção certa, isso fosse bom ou não. Em um breve espaço de tempo ainda deixou uma mensagem dentro da mente de Kueryon, antes da magia ser completada, onde pedia perdão por ter agido daquela forma. Estas palavras o emocionaram e por uma fração de segundos ficou triste, provavelmente a maior tristeza que tenha sentido em toda a sua longa vida.

"Dimensão negra absorva!"

A princípio não sentiu exatamente nada, somente o ar se tornando denso ao seu redor. Depois o ambiente iluminado foi sendo substituído por uma escuridão crescente, aumentando devagar e quando se deu conta, suspeitou que se encontrava em outro lugar, fora do mundo que conhecia e a primeira certeza disso se deu ao olhar para o céu totalmente limpo, sem nuvens ou estrelas, que eram tão comuns nas noites de Nehode.

Não fazia frio e o clima parecia até de certa forma seco e parado, sem nenhuma brisa. Neste ponto a escuridão já era tão densa que chegava a sufocar e em todas as direções em que olhou a princípio nada notou.

Começou a andar sem rumo certo e sentiu que o solo era fofo. Após algum tempo caminhando percebeu pequenas luzes se movimentando nas proximidades. Só quando observou com mais atenção é que notou que algumas dessas luzes flutuavam em pares, às vezes se apagando e acendendo rapidamente, como se fossem olhos de animais que brilham no escuro. E não é que, de certa forma, tinha razão.

As luzes flutuantes eram muitas e agora o medo já sufocava mais que a própria escuridão. Em seu peito, pendurado pela corrente, seu amuleto emitiu uma luz fraca e verde, e ela tomou-o entre as pequenas mãos, sentindo que ele estava quente. Na mesma hora a lembrança do pai a invadiu e algumas lágrimas rolaram sem serem percebidas.

"Não me deixe só!" - Pensou com toda a força de sua mente - "Não me deixe... Eu tenho medo do escuro..."

E longe, muito longe dali, alguém chorou...

A Saga de Kedl - No Caminho Escuro (Em Andamento)Onde histórias criam vida. Descubra agora