Cap. 19 - Aprendendo a lidar

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Sempre me incomodou contar minha história e receber da pessoa um olhar de "tadinho do Caio... Olha onde ele se meteu". Eu fiz escolhas e busquei tirar o melhor delas. É um pecado sentir pena de quem se arrisca. Eu me arrisquei e teria feito tudo outra vez, mesmo sabendo das coisas pelas quais eu passaria. A menos que se queira o mal dos outros, não há nada de errado em correr riscos.

Junior, o filho do deputado que pagou o programa, corria risco também. Senti naquela noite que já estava de saco cheio de ser sombra de um pai machista. Mas seu medo era notório. Andávamos pelas ruas de São Paulo e, ainda que a noite ajudasse a proteger sua identidade, preocupava-se em ser reconhecido. Se manteve o mais distante que pôde e tomava rum caro de uma garrafa que buscou no seu carro estacionado em um estacionamento próximo. Do seu carro também tirou um boné para usar - funcionava como um disfarce para ele.

- Para onde estamos indo, Caio?

- Eu tive uma ideia, mas vai ser um pouco cansativo.

- Fala aí.

- Tá rolando virada cultural no centro. Tem alguns eventos bacanas durante a madrugada. Podíamos dar uma olhada.

- Sem chance. Muita gente.

- E daí? Não estaremos fazendo nada de errado. Não tem com o que se preocupar, Junior.

- Tá bom, vai. Vamos lá.

Procurei pelo celular a programação da virada cultural. Tínhamos dezenas de opções em lugares espalhados pelo centro da cidade. Fizemos uma verdadeira maratona. Entramos e saímos de apresentações e passamos a beber vinho vagabundo de ambulante depois que o rum do Junior acabou. A princípio, nada lhe interessava, mas logo revelou um senso de humor fazendo piada das coisas que não gostava. Imaginou como seria se um mosquito entrasse na garganta do tenor  personagem principal da ópera que mal entendíamos o significado, riu de um casal de mendigos dançando com sensualidade no meio da rua ao som de uma cantora brega no palco da Praça da República, debochou da travesti que se apresentava em outro palco e que se parecia com a Elza Soares - rimos ainda mais ao descobrirmos que era mesmo a Elza Soares, e ainda comemos cachorro-quente que ele cuspiu depois de ver uma barata na carrocinha. Era tudo patético e simples demais, mas era real. Junior foi se desarmando e já nos tratávamos como se nos conhecêssemos há muito tempo.

Paramos no Viaduto do Chá e vimos que no vale do Anhangabaú o cantor Criolo estava se apresentando

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Paramos no Viaduto do Chá e vimos que no vale do Anhangabaú o cantor Criolo estava se apresentando. Ficamos lá de cima porque a praça estava muito lotada para nos aproximar. Junior não conhecia o cantor e ficou um tempo prestando atenção na música.

"Amizade é importante, mas o amor escancara a tampa
E o que te faz feliz também provoca dor
A cadência do surdo no coro que se forjou
E aliás, cá pra nós, até o mais desandado
Dá um tempo na função, quando percebe que é amado
E as pessoas se olham e não se falam
Se esbarram na rua e se maltratam
Usam a desculpa de que nem Cristo agradou
Falô! Cê vai querer mesmo se comparar com o Senhor?
As pessoas não são más, mano, elas só estão perdidas. Ainda há tempo."

Com amor é mais caro (Completo)Onde histórias criam vida. Descubra agora