Ele não precisou esperar muito. Para dizer a verdade, foi logo depois do almoço que ela veio atrás dele. Não que Bryce percebesse, claro. Fui eu que imediatamente a vi no meio da multidão, quando todo mundo começou a se encaminhar para os armários.
Os fantasmas exalam uma luminosidade que os diferencia dos vivos – felizmente, pois caso contrário muitas vezes eu nem saberia a diferença.
Seja como for, lá estava ela fulminando-o com olhares de ódio. Sem saber que ela estava ali, as pessoas simplesmente passavam através dela. Eu até que os invejava. Preferia que os fantasmas fossem invisíveis para mim, como são para todo mundo. Sei que se fosse assim eu não teria desfrutado da companhia do meu pai durante esses últimos anos, mas também não estaria ali agora sabendo que a Ontari estava para fazer algo terrível.
Não que eu soubesse o que ela estava pretendendo fazer com ele. Os fantasmas podem ser bem mau quando querem. Aquele lance da Lexa com o espelho não era nada. Já houve casos de me atirarem objetos com tanta força que, se eu não tivesse me abaixado, também estaria hoje no mundo dos espíritos. Já sofri concussões e tive ossos quebrados não sei quantas vezes. Minha mãe acha que eu atraio acidentes. É isso aí, mãe. Isso mesmo. Quebrei o pulso caindo da escada. E caí da escada porque o fantasma de um conquistador espanhol de trezentos anos me empurrou.
Mas bastou eu ver a Ontari para entender que ela não estava com intenções nada boas. E eu não chegara a esta conclusão baseada no nosso encontro prévio. Não, senhor.
Apenas acompanhei o olhar da falecida e vi que não era exatamente para Bryce que ela estava olhando. O que atraíra sua atenção fora um dos suportes da parte do corredor por onde Bryce estava passando. E dali onde estava, vi que a madeira estava começando a tremer. Mas não em toda a extensão do corredor, claro que não. Era só uma peça que estava tremendo, daquelas bem pesadas. Exatamente a peça que se encontrava acima da cabeça de Bryce.
Agi sem pensar. Joguei-me contra Bryce com toda a força e ambos voamos juntos. O que veio exatamente a calhar. Pois ainda estávamos rolando no chão quando ouvi uma enorme explosão. Abaixei a cabeça para proteger os olhos, de modo que não pude ver quando a peça de madeira explodiu. Mas ouvi. E também senti. As lascas de madeira doeram à beça. Ainda bem que eu estava usando calças de lã.
Bryce estava tão imóvel debaixo de mim que pensei que um pedaço mais pesado da madeira podia tê-lo atingido entre os lobos frontais ou algo assim. Mas quando afastei meu rosto do seu peito, vi que ele estava bem – estava apenas de olho grudado, aterrorizado, na tábua de mais de 25 centímetros de largura e quase 70 centímetros de comprimento que viera aterrissar a poucos metros de nós dois.
Por toda parte ao nosso redor estavam espalhados pedaços de madeira. Provavelmente Bryce estava se dando conta de que, se aquela prancha tivesse atingido seu crânio, também haveria agora pedacinhos de Bryce espalhados por ali.
— Dá licença, dá licença — disse a voz assustada do padre Jaha, que logo vi abrindo caminho pela multidão apavorada que se juntava ali. Ele ficou congelado quando viu aquele pedação de madeira, mas ao dar com Bryce e comigo voltou à ação:
— Deus do céu! — exclamou, acorrendo a nós. — Vocês estão bem, crianças? Clarke, você se feriu? Bryce?
Lentamente, comecei a me sentar. Eu já tinha me acostumado a me apalpar para ver se algum osso estava quebrado, e acabei descobrindo, ao longo dos anos, que quanto mais lentamente a gente se reerguer, mais chances terá de descobrir o que está quebrado, e menos chances de apoiar o peso do corpo nessas partes.
Mas daquela vez nada parecia estar quebrado. Fiquei então de pé.
— Deus misericordioso! — dizia o padre Jaha. — Têm certeza de que estão bem?
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Sempre ao seu lado
RomanceVivi mais de mil anos. Morri incontáveis vezes. Esqueço o número exato. Minha memória é uma coisa extraordinária, mas não é perfeita. Sou humano. As primeiras vidas são um tanto indistintas. O arco da alma segue o desenho de cada uma das vidas. Houv...