Capítulo 23 - Guilherme

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Quando as noites eram claras
  Você era a primeira estrela que eu via
(...)
Eu olho ao meu redor
E quero que você esteja lá
Porque sinto falta das coisas que compartilhamos
(...)
( Used to - Daughtry)



Uma das verdades absolutas da vida é que a paixão consegue te levar instantaneamente do céu ao inferno. Eu conheci o paraíso no dia em que beijei Lara e agora me vejo descendo ao inferno.

Enquanto dirijo, me pergunto quando vou finalmente acordar desse pesadelo que estou vivendo.

Paro em um sinaleiro e ligo o som. Por que o ser humano tem essa tendência masoquista de amplificar sua dor ouvindo música romântica? Não sei a resposta, mas vou deixar o som ligado ainda assim.

Olho para a faixa de pedestres, ninguém está atravessando agora e sou arrebatado pela lembrança do dia do acidente. Do desespero que senti ao ver Lara ali, no chão, do medo que me tomou quando ela desmaiou.

Começo a pensar nas primeiras vezes que nos vimos, em como ela parecia delicada e tinha certa tristeza dentro do olhar. Ela foi desabrochando aos poucos, revelando-se e, cada vez que ela se abria e eu a conhecia melhor, mais ela me cativava.

Tento me recordar do exato momento em que descobri que estava me apaixonando e a lembrança dos olhos de Lara me observando tocar violão vem à minha mente.

Olho para cima, o semáforo está verde e eu nem havia percebido. Não há carro nenhum atrás de mim, então passo a marcha calmamente e continuo dirigindo sem rumo.

Paro em uma esquina qualquer, olho para o banco vazio ao meu lado e a imagem de Lara sentada ali, olhando para o céu é tão nítida que eu, imediatamente, sei para onde devo ir.

Dirijo até o “morrinho”, estaciono meu carro e começo a olhar as luzes da cidade à minha frente. A noite nem de longe está bonita como quando eu trouxe Lara aqui. Na verdade, a noite parece triste.

Encosto minha cabeça no banco do carro e fecho os olhos por um momento. Me apego à melhor lembrança que tenho dela e começo a pensar em nosso beijo: a claridade emitida pela vela, minha respiração descompassada, o cheiro do cabelo de Lara, o calor de sua cabeça recostada em meu peito, a pele macia de seu rosto.

Cada detalhe faz com que a dor que eu sinto aumente gradativamente e eu não consigo evitar, eu continuo trazendo à memória cada pequeno detalhe: os olhos dela encontrando meus olhos, sua aproximação lenta, o toque dos lábios dela nos meus. Quase posso sentir seu cheiro, seu hálito e o gosto daquele beijo.

Abro os olhos e continuo minha tortura particular, colocando a mesma música que toquei para ela.

Encosto minha cabeça no volante, tiro o celular do bolso e leio o aviso das várias ligações perdidas de Karen. Não quero dar explicações, não quero falar com ela, não quero falar com ninguém.

Balanço a cabeça enquanto me lembro da conversa que tive com Anne no dia seguinte ao que fomos àquele bar e encontramos Karen:

― Você ficou maluco? Vai sair com a Karen? Você nem gosta dela, Gui.
― Maninha, eu não disse aquilo pra valer. Ela me chamou pra sair na frente de todo mundo, seria rude da minha parte falar que não ali. Eu imaginei que, dando uma resposta genérica, ela iria embora mais rápido. Depois ela me chamou e começou a falar de uns problemas de saúde que a mãe dela está passando e como ela tem sofrido. Praticamente nem me deixou falar.
― Ou seja, ela fez um jogo psicológico para você não voltar atrás no que disse.
― Ela disse que me ligaria qualquer dia, então, deixei pra lá.
― E se ela te ligar?
― Bom, eu dei minha palavra que sairia. Mas, se nós sairmos, vou aproveitar a oportunidade para ter uma conversa séria. Ela não quer entender que não tem mais volta. Não adianta recusar convites e me esquivar. Ela só vai parar quando conversarmos seriamente.

Eu nunca poderia suspeitar que ela ligaria na sexta me convidando para jantar no sábado. Quando namorávamos, em ocasiões especiais íamos àquele local. Ela deve ter pensado que me levar àquele restaurante faria com que eu cedesse.

Quando entramos, eu não notei o a presença de Lara e Rafael. Não imaginava que aquele havia sido o local escolhido por ele.

No dia em que Rafael me procurou no escritório, assim que ele saiu, André entrou para saber do que se tratava.

― Ele veio pedir que eu me afaste de Lara ― eu respondi ao meu amigo e me recordo de sua reação.
― Que cara otário. Quem ele pensa que é? Dono da Lara? O que você disse a ele Müller? O que você vai fazer?
― Eu ainda não sei, André. Talvez eu deva me afastar.
― Olha, Guilherme, essa escolha não cabe a ninguém a não ser a ela. ELA precisa escolher. Se afastar da Lara seria como escolher por ela. Se você sumir, a Lara não terá nenhuma escolha a fazer, só haverá o Rafael.

Meu amigo estava certo. Talvez eu não devesse ter sumido durante a semana. Eu queria apenas dar espaço para que ela entendesse seus próprios sentimentos.

Volto meus olhos outra vez para as luzes da cidade e penso no que aconteceu no restaurante. Karen foi ao banheiro logo após chegarmos e demorou um pouco lá dentro. Quando voltou, mal sentou e vomitou a novidade.

― Encontrei aquela sua amiga aqui. Aquela que estava com vocês no bar, a de muletas.

Imediatamente, comecei a procurá-la com os olhos, mas ela não estava em meu campo de visão.

― Ah, ali. Ela está sentada lá atrás com um rapaz.

Disfarçadamente, me virei e pude ver Rafael e Lara em uma das melhores mesas do restaurante. Havia champanhe e eu tive medo de que ele tivesse escolhido esse dia para fazer o que me disse que faria:

“Eu vou pedir a Lara em casamento, Guilherme. Foi por isso que comecei a trabalhar arduamente. E eu não quero que nada e nem ninguém faça com que ela tenha dúvidas quando me disser o sim.”

Quando o violonista começou a tocar, mal pude ouvir Karen falando:

― Ah, que lindo! Deve ser alguma ocasião especial. Depois nós podemos ir até lá parabenizá-los, não é Gui?

De onde estava eu não pude ouvir o que ele dizia, mas metade do restaurante tinha a atenção voltada para aquela mesa e, quando ele tirou uma caixinha preta do bolso e abriu, exibindo-a à Lara, meu coração morreu mais um pouco.

― Oh, meu Deus! Ele está fazendo um pedido de casamento. Que romântico! ― A voz de Karen era apenas um sussurro distante, eu mal podia ouvir.

Meu coração morreu de vez quando Lara balançou a cabeça aceitando aquele pedido e abraçou Rafael. Senti um nó se formar em minha garganta.

Eu não podia ficar ali mais nenhum segundo, não podia continuar assistindo a isso. Eu acabara de ver a mulher pela qual estou perdidamente apaixonado ficar noiva de outro homem. Nem me lembro direito o que disse à Karen, apenas saí sem olhar para trás. Sei que fui indelicado, mas ela veio no carro dela e eu no meu, então, voltaria para casa sem problemas.

Volto para casa arrasado. Não posso mais lidar com isso. Não posso mais vê-la, cheguei ao meu limite aqui. Vou me permitir ser egoísta e não me importar com a amizade dela e da minha irmã. Não consigo continuar a vê-la.

Atravesso a sala em direção ao meu quarto e Annelise vem atrás de mim. Assim que me sento na cama, ela começa a perguntar:

― Você está bem?
― Sim ― digo, mas minha cabeça nem está aqui nesse planeta.
― Guilherme? Você está bem? ― Ela fala em um tom sério e eu volto à Terra.
― Estou, Anne. O que foi? ― Pergunto também sério.
― Karen me ligou. Disse que você a deixou no restaurante sozinha logo depois que…

Perfeito, as notícias voam.

― É. Foi bem isso mesmo. Eu não consegui ficar lá. ― Anne me olha com ternura e, no fundo, acho que com um pouco de piedade.  Me jogo na cama e viro para o outro lado.
― Maninho? Como está seu coração?
― Que coração, Anne? Eu o perdi hoje à noite, naquele restaurante.

Ela não diz nada, mas sei que continua com a cara de piedade. Viro o rosto para ela e continuo.

― Ela me beija, Annelise, ela me beija e, então, aceita se casar com outra pessoa. Me explica isso! Sabe o que é pior? Ela nem parece gostar dele, acho que nem ela mesma sabe o motivo de estar com ele. Ela se acomodou.

Anne me ouve e evita dar palpites. Na verdade, só preciso disso nesse momento, alguém que apenas ouça.

―É sempre assim, Anne. Ou eu gosto de quem não gosta de mim ou de quem não gosta da forma que eu sou.
― Não fala isso, Gui! Você sabe que isso não é verdade.

E aqui estou eu, parecendo uma adolescente desabafando com a amiga. Realmente, as coisas aqui saíram do meu controle.

― Maninha, eu quero ficar um pouco sozinho, se não se importa.
―Tá bom... ― Ela parece hesitar. ― Qualquer coisa me chama, viu?

Sorrio e dou um beijo no rosto da minha irmã.

― Pode deixar.

Assim que ela sai, encosto a porta, pego meu violão e desconto nas cordas tudo o que eu estou sentindo. Toco até sentir os dedos começarem a doer. Mil vezes melhor sentir essa dor nos dedos do que na alma.

Sei que não conseguirei dormir tão cedo, então vou para a área dos fundos. Deito na rede e fico observando o céu. A noite continua triste ou talvez seja apenas o meu estado de espírito. Há algumas estrelas e eu fixo o olhar naquela que mais brilha.

Não sei quanto tempo fico ali pensando e olhando o céu e, quando finalmente vou para o quarto, todos da casa já dormem. Coloco a cabeça no travesseiro imaginando se eu deveria ter feito algo, ter tomado alguma atitude, ter me declarado.

Dou um soco no travesseiro. Isso é o que dá ser bonzinho demais. Nem sei quantas oportunidades já perdi com esse meu jeito. Eu deveria fazer o mesmo que o André, talvez assim eu levasse menos na cara.

Levanto bem tarde na manhã seguinte e ainda fico no quarto por muito tempo. Quando saio, o almoço está praticamente pronto e todos me olham com ar de preocupação.

Ótimo, todo mundo sabe que eu estou apaixonado por uma mulher que está noiva de outro cara.

Tomo um copo de suco sob os olhares de minha mãe e meu pai e vou para o sofá ocupar minha cabeça com qualquer coisa que esteja passando na TV.

Durante o almoço, converso pouco e como menos ainda. Na primeira oportunidade, volto para o sofá.

Pouco tempo após o almoço, André chega com uma cara suspeita e eu imagino que alguém deve ter ligado para ele.

― Fala, Müller!
― Quem foi?
― O que, cara?
― Quem te ligou?

Ele sabe que não tem para onde correr e confessa.

― Sua irmã.
― Até qual parte da história você sabe?
― Que sua paixonite está noiva.
― Hummm… ― Expiro e volto a olhar para a TV.
― Cara, você tá mal, hein. Nem quando terminou com a Karen você ficou assim.

Continuo calado.

― Eu não vim para ser ignorado.
― Desculpa, André. Apenas não é um bom momento.
― Vamos sair um pouco?
― Sair, André?
― É. Vamos dar uma volta, tomar alguma coisa, sei lá. Vamos conversar em qualquer outro lugar porque não vou me enfiar no seu quarto com você feito duas primas trocando segredinhos.

Estou sem ânimo algum, mas resolvo me trocar e sair com ele. Qualquer coisa seria melhor do que ficar aqui remoendo o que eu estou sentindo.

― Tô a fim de tomar um milk-shake. Conheço um lugar que faz um sem igual. Vamos sentar lá na porta, tagarelar feito duas comadres e você vai me contar suas desventuras amorosas, Müller Júnior.

Nós nos sentamos na porta de um estabelecimento que vende, além de sorvetes, vitaminas. Resolvo tomar a mesma coisa que André e, de fato, estava muito bom.

― Conta, Guilherme. O que aconteceu ontem?
― Saí com a Karen ontem. Eu estava disposto a conversar com ela para que, de uma vez por todas, ela parasse de tentar reatar nosso namoro. Você a conhece, sabe que ela é muito insistente e eu aceitei jantar no restaurante que costumávamos frequentar quando namorávamos.
― Aquele mais chique?
― É.
― Você queria dar um toco nela em um lugar romântico?
― Não, André! Eu insisti para irmos a outro local, mas ela queria ir lá. A Karen me venceu pela insistência.
― Ela queria era dar o bote.
― Quando chegamos, Karen foi ao banheiro e voltou dizendo que havia encontrado a Lara. Ela estava lá com o Rafael. Ele a pediu em casamento e eu vi tudo. Contratou um violinista, fez uma cena de filme.
― E ela aceitou...
― Sim. Eu fui embora na mesma hora.
― E a Karen?
― Nem sei.
― Deixou ela lá? ― André pergunta assustado.
― Deixei.

Ele começa a rir.

― Largou a loira sozinha lá? Estou até imaginando a cena. ― Ele gargalha e, pela primeira vez, desde ontem à noite, consigo rir um pouco. ― Guilherme, Guilherme, eu te avisei. Você tinha que ter dado a ela a chance de escolher. Você não se manifestou e ele se tornou a única opção.
― Eu sei.
― Você é muito parado, colega. Por que nunca disse a ela como você se sentia?
― Porque ela me via como amigo, André. Se eu falasse, iria assustá-la. Ela sumiria do mapa.
― Isso é o que você acha. Mas só teria a certeza se falasse.
― Também tinha o namoro de três anos na história.
― Vamos ser sinceros? Você foi covarde. Melhor o não do que a incerteza, certo? E outra, pare de ser tão certinho. Ser cavalheiro é bom, mas não o tempo todo. Mulher gosta de atitude. Ninguém aguenta viver um amor platônico para sempre. Pare de ser tão Shakespeariano, diminua o drama e aumente a ação.

Olho para ele intrigado, mas a verdade é que ele tem muita propriedade para falar desse assunto.

― E a sua situação com a Patrícia, Don Juan? ― Pergunto.
― Bom... ― Ele passa a mão na barba que está por fazer. ― Agora depende mais dela do que de mim. Já deixei bem claro o que eu quero.
― Mas você por um acaso deixou bem claro o que sente, André? Nem eu sei ao certo qual é a de vocês dois. Há tempos não te vejo correr atrás de uma mulher assim. Você gosta dela ou só está procurando diversão?
― Não esquenta, Müller. Sei que não posso ser cafajeste nem com funcionárias do escritório nem com as amigas da sua paixão platônica.
― Idiota. É sério. Me explica essa história de vocês.
― Eu não sei explicar. A Patrícia tem um ímã que me atrai. E eu confesso que as dificuldades iniciais que ela impôs me fizeram ficar ainda mais atraído porque eu percebi que ela não é fútil e fácil como a maioria.

André explica e parece bem empolgado me contando.

― Durante esses dias que passei na casa dos meus pais, nós conversamos todos os dias por mensagem. Ela é engraçada, tem um senso de humor único, é bonita, tem conteúdo.
― Mas…?
― Mas ela tem alguma coisa, não sei. Parece que ela se tranca. Ela entra no jogo, flerta, me deixa maluco e, quando as coisas vão ficar sérias, ela pula fora. Isso é atitude de quem…
― De quem já se machucou?
― É. Eu acho. De quem tem medo.
― Sabe, André, eu tenho um amigo que é bem parecido com ela. Ele sai com todas as mulheres que vê pela frente, mas nunca se envolve. Você acha que isso é atitude de quem já se machucou e tem medo?

André me olha rapidamente e desvia o olhar.

― Como foram os dias que você passou na casa de seus pais? ― Pergunto.
― Bons.
― Alguma situação embaraçosa?
― Sempre tem. Cidade pequena é assim: se você não vai em busca do passado, o passado procura por você. Mas o foco hoje não sou eu, é você. Já sabe o que vai fazer?
― E tem algo que possa ser feito? A única coisa que posso fazer é tentar superar. Não posso mais vê-la.

Ele me dá um tapinha nas costas.

― Dói, né? Cara, eu te entendo perfeitamente bem. Mas você vai superar, não há dor que dure para sempre.

Eu sei que ele tem razão. Sei que, mais cedo ou mais tarde, vou matar esse sentimento. No momento, eu quero apenas me permitir lamentar por ter deixado tantas oportunidades passarem, por não ter aproveitado enquanto tive a chance. A vida me deu um murro para que eu acordasse, e, agora, no meio dessa tempestade, eu percebo que meus olhos começam a se abrir.


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Boa noite, galera!
Só vcs pra me fazerem postar no meio de uma viagem rsrs


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