Capítulo 28 - Annelise

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Aconteceu no dia que você colocou sua mão sobre a minha
Você subiu à minha cabeça como um copo de vinho
Garota, você chama minha atenção como um vaga-lume
E me faz feliz por estar vivo
(...)
(Firefly - Jimmy Needham)




Olho para o rapaz à minha frente e fico totalmente surpresa. Eu acho que não estou preparada psicologicamente para isso.

Minha mente volta três anos no tempo e eu me vejo nos corredores da faculdade passando inúmeras vezes perto do cara que fazia cubinhos de gelo brotarem em meu estômago, apenas com o intuito de fazê-lo me notar. Mas era tudo em vão.

Ele era um belo moreno com uma carinha de menino nerd misturada com um ar de homem maduro.

Lembro-me de uma ocasião específica em que estava com pressa e acabei tropeçando e derrubando alguns materiais no chão. Não foi planejado dessa vez, mas, para minha felicidade, ele estava por perto e me ajudou a recolher as coisas do chão. Agradeci e tentei puxar assunto, porém ele logo se despediu e me deixou a ver navios.

Eu poderia fazer uma lista de situações em que tentei fazê-lo notar minha presença, mas, em todas, só havia um rápido contato visual e a atenção dele se voltava para qualquer outra coisa que não fosse eu. Cheguei a pensar que ele fosse gay, mesmo minhas fontes seguras informando que não.

E agora, depois de três anos, ele está aqui na minha frente e eu me sinto tão nervosa que mal consigo articular meus pensamentos.

― O-o-oi ― ele responde, depois de alguns segundos. Que coisa! Nunca soube que ele era gagoO ― Você sabe o meu nome? ― George questiona, espantado e, antes que eu responda, continua falando. ― Ah, é claro que sabe, a Patrícia te contou.

Ok. O que foi que eu perdi? As coisas que ele está falando são meio desconexas.

― A Patrícia? ― Olho de relance para ela, que está com uma cara de paisagem ― Vocês se conhecem?
― Nós… ― George olha para Patrícia. ― ...trabalhamos juntos.

Não é possível. Quais as probabilidades de uma coincidência assim acontecer?

― Anne, esse é o George. Ele trabalha comigo no laboratório ― Patrícia começa a falar. ― George, essa é a Annelise, irmã do Guilherme, namorado da Lara, minha melhor amigl. ― Ela aponta para cada um de nós enquanto nos apresenta.  ― Pelo visto eu posso dispensar as formalidades porque vocês, aparentemente, já se conhecem.
George diz “não” ao mesmo tempo em que eu digo “sim” e eu me sinto constrangida.
Claro que ele não me conhece. Eu é que era caidinha por ele. Tento consertar as coisas antes que ele me ache maluca.

― Bom, na verdade o conhecia de vista. Ele estava no penúltimo ano de Biomedicina e eu no segundo ano de Direito. Nós nos cruzamos algumas vezes pela faculdade…

Ah, não! Acho que dei detalhes demais. Ele vai pensar que eu era uma tiete maluca! Preciso calar essa minha boca.

― Você se lembra de mim? ― George fixa os olhos em meu rosto. Ele parece surpreso e feliz ao mesmo tempo.
― Ham... lembro sim.

Ouço uma risadinha e sei exatamente de onde vem: Patrícia.

― É um prazer, George! Podemos entrar? Não é bom a Lara ficar em pé muito tempo ― meu irmão superprotetor pede e, após a compra dos ingressos, entramos na sala.

Posiciono minha cadeira no lugar reservado para cadeirantes, tendo, ao meu lado esquerdo, o corredor. Ao meu lado direito, George se senta no único lugar estranhamente disponível.

Se a Patrícia soubesse que George era o cara de quem eu gostava na faculdade, eu teria certeza de que isso é uma armação, mas ela não poderia saber.

Olho disfarçadamente para George, sentado a meu lado, e ele parece nervoso. Pensando bem, ele costumava reagir da mesma forma na faculdade quando eu tentava me aproximar. Será que o problema sou eu?

― Então, você terminou a faculdade? ― Ele puxa assunto e eu fico aliviada.
― Na verdade, não. Tranquei o curso após o acidente, mas pretendo voltar em breve!
― Que bom. Pena que eu já me formei e não vou mais te ver nos corredores ― ele solta a frase e olha para a tela, ainda vazia.

Tento assimilar o que eu acabo de ouvir, mas a tela se acende e começam a passar os trailers de novos filmes.


O filme foi bastante divertido e comentamos rapidamente algumas cenas. Sinceramente, nunca poderia imaginar que algum dia estaria sentada ao lado dele em um cinema depois desses anos.

Após a sessão, fomos até a praça central onde durante a noite algumas lanchonetes ficam abertas. Acho estranho o fato de não irmos a algum barzinho frequentado pelos rapazes, mas confesso que gosto da escolha que fizeram hoje. A noite está quente e clara e ficar a céu aberto é uma ótima opção. Além do mais, por se tratar de uma sexta-feira, a praça está consideravelmente movimentada e é agradável observar o movimento ao nosso redor.

Fizemos um lanche delicioso e, igualmente, calórico. Assim que terminamos, sou surpreendida pelo meu irmão e Lara pedindo licença para se sentarem sozinhos em um banco mais adiante e, logo depois, sem cerimônia nenhuma, Patrícia e André fazem o mesmo. Me deixam sozinha com George e fico tão envergonhada que levo o que parece séculos para ter coragem de olhá-lo e dar um sorriso amarelo.

Durante cerca de cinco minutos, conversamos sobre coisas bobas e quando, enfim, ficamos mais à vontade um com o outro, passamos a falar sobre a época da faculdade.

― Ainda tem contato com os seus amigos da faculdade? Aquele do cabelo espetadinho e o outro, que sempre usava a mesma camiseta?

George começa a rir.

― Ele tinha duas camisetas iguais. Eu o avisei que todo mundo pensaria que era uma só, mas ele não me ouviu. ― George ainda tem aquele sorriso que eu namorava à distância. ―  Nós ainda nos falamos às vezes, mas o contato diminuiu bastante. E ele ainda tem aquelas camisetas.
― Ah, não! ― Sorrio e coloco uma mecha do meu cabelo atrás da orelha.

George me olha intrigado e pergunta:

― Então, você se lembra mesmo de mim?
― Claro que me lembro ― respondo, sem entender o motivo de tamanha surpresa. ― Você é quem não se lembra de mim.
― Eu me lembro, sim! Eu te via durante o intervalo das aulas e você sempre estava sorrindo e rodeada de pessoas. Os caras comentavam o quanto você era bonita. Acho que a faculdade inteira era a fim de você. ― Ele parece acanhado.
― O quê? ― Não me contenho e dou uma gargalhada ao ouvir isso. ― Isso não é verdade, George.
― É claro que é!  Você é que não ouvia os comentários quando passava.
― Você está exagerando ― continuo, achando graça da situação. Claro que eu sabia da existência de alguns rapazes interessados, mas não tantos quanto ele está me contando.
― Não estou exagerando. Meus dois amigos, por exemplo, tinham uma paixão platônica por você.
― Então seus amigos sucumbiram ao meu charme e você não?

As palavras saem da minha boca sem que eu veja. Imediatamente me arrependo de tê-las dito, pois tenho medo do que George pensará de mim, mas, para meu espanto, seu rosto fica vermelho e ele sorri.

― Eu disse que a faculdade inteira gostava de você. Isso também me inclui.

Tenho certeza de que não consigo esconder minha cara de surpresa. Impossível! Ele mal me olhava naquela época.

― Não é verdade. Você mal me olhava, sempre desviava sua atenção para outro lugar e, quando eu me aproximava, você parecia ficar nervoso e sumia rápi...

Enquanto eu argumento, entendo o significado daquilo que eu estou dizendo. É claro! Ele não me encarava e ficava nervoso quando eu estava perto dele. Como eu fui sonsa! Ele gostava de mim e eu não percebi. Só não fui tão sonsa quanto a Lara e meu irmão, mas, ainda assim, fui.

― Você gostava de mim! ― Afirmo com a expressão vitoriosa e o sorriso dele cresce tanto quanto a vermelhidão em seu rosto. ― Por que nunca me disse?
― Eu? Não, obrigado. Poupei você de ter que me dar um fora.
― E quem disse que eu te daria um fora? ― Questiono, abismada.
― Não daria? ― Ele está duas vezes mais abismado.
― Lógico que não! Eu era a fim de você, George. Por que você acha que eu ficava desfilando na sua frente?

George parece estar em choque. Arregala os olhos e fica mudo por quase um minuto.

― Você gostava de mim? ― As palavras saem arrastadas.
― Gostava, mas você nem me olhava…
― Você… gostava…de... mim? ― Ele pergunta, pausadamente, como se aquilo que eu havia dito fosse tão absurdo assim.
― Eu… gostava… de… você ― respondo da mesma forma.
― Ah, não acredito! ― Ele afunda a cabeça nas mãos. ― Eu nunca te falei nada porque sempre fui tímido e morria de medo de você me dar um fora. Não acredito que perdi essa oportunidade, que burro que eu fui!

Nesse momento eu sinto o impulso de dizer a ele que a oportunidade ainda existe, mas algo me impede.

Eu não sou mais aquela Annelise que George via nos corredores da faculdade. Agora eu estou presa a uma cadeira de rodas e, de diversas maneiras, isso também afetará a vida do cara que estiver ao meu lado. Além disso, não sei se ele ainda sente algo por mim, então, desisto da ideia.

Nós rimos muito, relembrando diversos casos e eu me surpreendo ao saber que ele se recorda de cada uma das situações que eu conto.

A conversa está tão agradável que mal percebemos quando os dois casais se aproximam, chamando-nos para ir embora, pois já está tarde.

George empurra minha cadeira de rodas até o carro de Guilherme e todos nos dão um certo espaço para que possamos nos despedir.
― Foi muito bom te rever, George.
― Igualmente.

Um silêncio incômodo se coloca entre nós dois.

― Então… boa noite. Nos vemos por aí, eu acho… ― me despeço sem querer.
― Boa noite. ― Ele se aproxima, totalmente sem jeito, e beija meu rosto.

Todas as vezes que tentei chamar a atenção dele culminaram nesse momento. Meu rosto arde e eu me sinto totalmente desajeitada. Ele tem esse efeito sobre mim.

Embora tenhamos nos despedido, continuamos nos olhando um pouco desconcertados. George ameaça ir embora dando um passo para trás, ainda de costas, mas para logo em seguida.

― Annelise?
― Sim ― respondo, com curiosidade.
― Você acha que… talvez, quem sabe, ainda daria tempo de… ham… reaver aquela oportunidade que eu perdi na faculdade?

Nem acredito no que estou ouvindo e fico totalmente sem reação.

Acho que George pensa que eu vou dar um fora nele e continua falando assim que vê que eu estou demorando a responder.

― Mas, se você achar que é tarde demais, eu vou entender, já faz muito tempo e…
― George? ― Interrompo-o enquanto o sorriso tenta ultrapassar as barreiras do meu rosto.

Eu não sei o que ele sente por mim, mas seja lá o que for vai muito além da minha deficiência física. Ele não se sentiu afugentado ao me ver em uma cadeira de rodas e isso é muito importante para mim.

George me olha com apreensão enquanto espera a resposta.

― Enquanto ainda vivermos, nunca é tarde demais para nada.

Ele sorri em resposta e balança afirmativamente a cabeça.

― Nós ainda estamos vivos…
― Bastante vivos. ― Continuo sorrindo.
― Vou pegar seu número de telefone com a Patrícia amanhã.
― Vou esperar sua ligação.

Ele olha para o chão e tenta conter um sorriso que teima em aparecer em seu rosto. Embora a claridade seja pouca no local onde estamos, tenho certeza de que George está novamente ruborizado.

Ele vira-se e vai embora, olhando algumas vezes para trás.
Enquanto o vejo partir, penso nos incidentes da vida. Meu acidente me afastou da faculdade e das pessoas que eu conhecia lá. Já o acidente da Lara trouxe novas pessoas à minha vida e fez com que eu reencontrasse o George.

Algumas coisas acabam ficando bagunçadas no decorrer dos anos, mas o mundo gira e, no fim das contas, sempre coloca tudo de novo no lugar.

Em algumas primaveras pode haver lágrimas e não somente flores. Mas os invernos também podem trazer consigo sorrisos e calor.

Talvez seja tempo da primavera chegar para mim, ou, talvez, quem sabe, a vida esteja sorrindo e aquecendo meu coração nesse inverno.

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Preparem os corações,  teremos o capítulo final, um bônus e o epílogo...então será  hora de dizer adeus!
Obs...assistam o clip dessa música, muito fofa, vale muito a pena. Bjs

Dois PassosOnde histórias criam vida. Descubra agora