Epílogo - Lara

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"Eu realmente não sei aonde esta estrada vai dar

Eu realmente não sei por que esta porta está aberta

Coloco um pé na frente do outro

É assim que vou descobrir"

(One Foot - Building 429)


Pouso a caneta vermelha em cima do papel e respiro fundo enquanto passo as mãos sobre meus olhos. Acabo de corrigir a redação de Lúcia, uma de minhas alunas. Ela costumava ser problemática no início, era arisca e tinha dificuldades para se concentrar. Hoje é uma das melhores alunas que tenho.

Descobri que o pai da menina é alcoólatra e sua mãe, ausente. Me aproximei, aos poucos, mostrei interesse, elogiei os acertos e, a cada melhora que Lúcia apresentava, eu a incentivava ainda mais. No começo ela relutou, fingia que não se importava, mas quando percebeu que eu me importava de verdade, ela se abriu e, finalmente, desabrochou.

Ao final de sua redação, Lúcia deixou um pequeno recado: "Obrigada por tudo, Professora. Você é minha inspiração." Logo abaixo, agradeço o carinho e elogio a melhora visível que Lúcia teve em sua forma de escrever. Faço isso com meus alunos, deixo recados como forma de demonstrar que me importo, de tentar fazer a diferença na vida dos jovens para os quais leciono.

Os anos apenas me mostraram que escolhi o curso certo. Lecionar é minha paixão. Sem sombra de dúvidas, devo essa escolha a meu marido, assim como devo tantas coisas boas que aconteceram em minha vida.

Estico o braço e pego o porta-retratos em cima da mesinha. Dentro dele está uma de minhas fotos favoritas. Estou parada, olhando para o sacerdote que celebra nosso casamento e Guilherme está olhando para mim. Ele tem um meio sorriso no rosto e um olhar apaixonado, como se não existisse mais ninguém naquela igreja, apenas eu. Sorrio involuntariamente. Sempre que olho essa foto, tenho essa reação.

Volto meu olhar para a estante à minha esquerda e observo os demais porta-retratos. Em uma das fotos nossas famílias estão juntas em uma pose nada formal. Minha cunhada, Anne, na frente, com o braço esticado, compartilhando o meu buquê com minha mãe, que se abaixa um pouco para ficar no mesmo nível da cadeira de rodas. Meus sogros de mãos dadas e eu e Guilherme, abraçados. Nossas primeiras horas como marido e mulher.

No outro retrato estávamos acompanhados de Patrícia e André, noivos na época. Patrícia me dava um meio abraço enquanto André segurava o ombro de Guilherme. Na terceira foto, minha mãe estava ao meu lado com os olhos marejados. Eu estava saindo de casa, começando uma vida nova e, de certa forma, ela também.

Por fim, uma foto de um almoço de domingo, com todos reunidos para comemorar a chegada do mais novo membro da família, meu pequeno Marcelo.

Levanto-me e vou até a janela do escritório. Guilherme fez questão que nossa casa tivesse um, pois ele como advogado também precisaria de um espaço para os livros e eventuais trabalhos que precisasse fazer em casa.

Lá fora, uma chuva fina cai. O dia está escuro e um pouco frio. Observo os pingos se chocarem com a janela e cruzarem o vidro embaçado devagar, a princípio, e rapidamente ao final. Sou tomada por um sentimento de nostalgia.

O tempo passou justamente como aqueles pingos. Me lembro de dias que pareciam se arrastar lentamente e alguns outros eu não queria que acabassem, mas passaram tão rápido.

O tempo acrescentou marcas ao meu marido, mas as rugas que surgiram e o tom grisalho de seu cabelo não fizeram dele uma pessoa diferente. Depois de vinte anos, ele continua o mesmo homem por quem me apaixonei.

Dois PassosOnde histórias criam vida. Descubra agora