Aquele sábado parecia perfeito para o propósito. Humberto pegou o material e partiu sozinho para a cachoeira. No caminho, ia imaginando como ficaria seu castelo.
Havia estado lá algumas vezes. Numa dessas, reparou a enorme quantidade de pedrinhas que no chão e desejou construir um pequeno castelo com elas. Estava influenciado pela recente viagem que fizera a Machu Pichu, vendo as ruínas das cidades Incas, feitas de pedra.
Naquele mesmo dia procurou uma pedra plana, de tamanho suficiente ao seu intento, junto ao rio, mas longe das trilhas, para ser a base de sua construção. Após encontrá-la, iniciou a coleta das pedrinhas e durante a busca dizia por pensamento:
— Quais de vocês apreciariam participar de minha obra?
Pelo pouco que conhecia, acreditava que as pedras não se importariam de serem utilizadas. Com efeito foi o que sentiu de cada pedra apanhada.
Humberto guardara em si uma frase que ouvira quase que sem querer: "Há duas oportunidades para seres educado: na primeira, quando pedes licença ou por favor; e na segunda, quando podes pedir desculpa ou dizer obrigado."
Hoje, estava voltando à cachoeira e com a autorização obtida, iria dar início à construção.
Quando chegou, olhou para a cachoeira e sentiu o local. Com poucas nuvens no céu, o sol ardia sobre a terra, deixando frescas apenas as áreas sombreadas pelas árvores que cercavam aquele pequeno vale, por onde seguia o rio. O vento, entretanto, aliviava o calor com sua agradável e confortante carícia. Era como brisa para ele mas mostrava-se revolto como um furacão para algumas folhas secas caídas no chão. Tudo o que sentia, indicava a presença de Paz e Liberdade. Apreciou aquela sensação. Respirou fundo, sentindo com prazer o ar puro penetrar os pulmões.
Estava só, como havia desejado, para dedicar-se à construção. O canteiro de pedras estava pronto, do jeitinho que tinha deixado.
Pegou um carvão e riscou as linhas de base do castelo. Sem mandriar, selecionou algumas pedras e uma a uma foi sobrepondo-as de tal maneira a formar as paredes e as torres de um pequeno castelo. Usou argamassa, daquelas utilizadas para prender azulejos à parede, para unir as pedras. Escolhia com cuidado cada pedra que usava, muitas vezes tendo que ir procurar outras além das que havia juntado no canteiro. Numa dessas buscas, descansou um pouco sobre uma grande pedra em frente à cachoeira. Nesse instante, olhando para a queda d'água, assim, sem planejar, abrimos a mente e perguntamos:
— Então, maravilhosa cachoeira, tem algo que possa querer dizer sobre este local?
— A cachoeira não pode responder pois sua existência é breve e mutante! — foi a resposta que obtivemos, ainda que não exatamente em palavras mas por espantosa compreensão. No entanto, ele não pôde entender o que exato aquela resposta queria dizer; instintivamente retrucou:
— Se a cachoeira não pode responder, quem respondeu? — continuávamos com a mente aberta e compreendemos nova mensagem:
— Sou a atual água deste rio, passo por aqui, mas mal posso responder sobre a história deste local, pois eu não paro minha jornada. A cachoeira é formada quando passo pela queda e está em constante renovação, ela não existe como uma entidade só. Ela tem diminuta existência e não poderá responder à sua questão. Se quiser uma resposta pergunte às árvores ou às pedras.
Humberto não se assustou com o diálogo. Na seqüência, terminou por aceitar pensando:
— Muito obrigado água, pela explicação que acaba de dar.
Atinou algumas idéias após a breve conversa.
A água por certo era a essência da cachoeira, mas não exatamente ela própria, que na verdade é efêmera.
A água em sua eternidade, como Humberto já compreendia após observá-la na caverna, seguia seu rumo recolhendo a experiência de ter sido cachoeira por aqueles segundos.
O que ele próprio estava a compreender mostrava a brevidade em que formaríamos um todo, em nossa união, tal qual a cachoeira se ligava à água do rio.
Duvidou que pudesse conversar com as árvores ou as pedras ainda naquela tarde. Deixaria para outro dia, talvez. Agora pôde entender porquê, ao se esforçar em manter a mente aberta, sentia cansaço. Tinha que lutar contra a razão e a imaginação, as quais insistiam em tomar conta de sua cabeça. Se tentasse comunicação com alguma árvore, ou até mesmo continuar a conversa com a água do rio, certamente a razão ou a imaginação o impediriam.
Ele não havia imaginado aquela conversa. Muito menos as ideias surgiram de seu raciocínio. Poderia até ter acontecido, mas não foi assim.
Humberto ouviu a água do rio explicar-lhe sobre a breve existência da cachoeira. Estava convencido disso.
Eu entendi que ele permitiu, ainda que inconsciente, nossa união. Todavia, diferente do que aconteceu quando a pedra se uniu conosco, dessa vez ele começou a refletir sobre minha existência. O diálogo ocorrido não em palavras mas em entendimento, forçou-lhe a imaginar algo além dele próprio. A ideia da essência iria preencher-lhe a mente por muito tempo. Tais acontecimentos eram sinais da proximidade do biviário.
Voltou ao local do castelo com outras pedras dispostas a participar de seu trabalho. O dia foi passando sem que percebesse, enquanto montava seu terapêutico quebra cabeça.
Algum tempo depois o sol já começava a esconder-se atrás da pequena mata ciliar, quando ele resolveu parar e continuar outro dia. Sentiu-se muito bem. Passou boa parte do dia sem ouvir carros, ver pessoas, ler jornal, olhar uma televisão e até mesmo escutar música. Naquele dia havia passado por uma trilha que não conhecia, dedicando-se ao seu precioso castelo, conversando com o rio e esquecendo o passado e o futuro. Humberto viveu aquele dia!
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" A água por certo era a essência da cachoeira, mas não exatamente ela própria, que na verdade é efêmera. A água em sua eternidade, como ele já compreendia após observá-la na caverna, seguia seu rumo recolhendo a experiência de ter sido cachoeira por aqueles segundos. "
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BIVIÁRIO
Romance" A água por certo era a essência da cachoeira, mas não exatamente ela própria, que na verdade é efêmera. A água em sua eternidade, como Humberto já compreendia após observá-la na caverna, seguia seu rumo recolhendo a experiência de ter sido cachoei...