Apesar do frio, despiu-se e atravessou o lago nadando rumo à cachoeira. Ao aproximar-se fez questão de entrar debaixo dela e com todo o pulmão, fez por berrar o mais alto que pôde. Com aquele grito longo e exagerado, saíram também quaisquer coisas que pudessem não fazer-lhe bem de algum modo. Ao menos, ele sentiu uma sensação agradável, um alívio, um prazer nessa "terapia do grito."
Entre tantos absurdos, assim são os berros dados sob uma cachoeira, num dia frio e com todo o gelo das águas, em grossas gotas, a caírem com força sobre as costas, como qualquer raciocínio não pode explicar.
Ficou pouco tempo, pois mergulhou e nadou até a margem, onde estava Pedro. Ao lado dele sentou-se e tremendo de frio, Humberto falou:
— Que frio!
— Eu imagino! Mas agora é a minha vez...
E lá foi Pedro à cachoeira dar seu grito.
Minutos depois, estavam novamente sentados um ao lado do outro, só que agora, ambos com frio. Mas o frio nada os incomodava. Naquele feriado, tudo o que Humberto e Pedro queriam era estar ali, num parque, acampados, juntos à natureza, à beira do rio, ouvindo e olhando a queda d'água e além disso, aparentemente, sentindo frio também.
Ficavam apenas "ouvindo o mato crescer".
Bons amigos, os dois eram sensíveis às coisas da natureza e gostavam de conversar sobre esse assunto.— Você entende a harmonia de uma árvore? — Pedro perguntou.
— Penso que sim, mas o que exatamente você quer dizer com isso?
— Eu tenho para mim, que as árvores são um excelente exemplo de harmonia. Estão sempre se empenhando em fazer o melhor que podem, sem ficar reclamando os desígnios do tempo. Se o solo é pobre, elas não ficam chateadas. Simplesmente fazem o melhor fruto que aquele solo permite. Se, por outro lado, o solo é muito rico, fazem o melhor fruto que poderiam fazer em sua vida, sem abusar de qualquer elemento.
— Que legal essa ideia Pedro... — Humberto disse e depois de pensar um pouco, acrescentou:
— Se você cortar um galho, a árvore irá esforçar-se para que o mesmo brote novamente. Não irá querer vingança, nem sentir raiva ou ficar protestando seu destino, ainda que não possamos afirmar que não sentirá dor.
— Isso mesmo! Mas será que realmente sentem dor?
— É difícil dizer, mas se o fazem, parece certo que não é a mesma dor que nós humanos sentimos, afinal não possuem um sistema nervoso como o nosso — lembrou-se da pedra dizendo: "Reajo à temperatura, mas não compreendo o contato, ao menos não como você faz ao tocar" — Eu acredito que não sentem, pois seria uma sacanagem da natureza deixar evoluir um ser indefeso, inerme aos seres móveis e que sentisse dor. Seria um absurdo imaginar, por exemplo, que as plantas rasteiras, como as gramas, possam sentir dor ao serem pisoteadas, não acha?
— A natureza é sábia, "quando um caminho está muito doloroso é sinal de que é o caminho errado." Veja, por exemplo, o que acontece quando encostamos a mão em uma chapa fervendo. Imediatamente ela se dirige para o sentido contrário.
— Então concorda que as árvores não sentem dor?
Pedro fez um sinal que sim com a cabeça, meio indeciso, mas não acrescentou nada a esse respeito, porém sobre a comparação das árvores com os seres humanos comentou:
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BIVIÁRIO
Romance" A água por certo era a essência da cachoeira, mas não exatamente ela própria, que na verdade é efêmera. A água em sua eternidade, como Humberto já compreendia após observá-la na caverna, seguia seu rumo recolhendo a experiência de ter sido cachoei...